quarta-feira, agosto 31, 2005

Rainha ( a M. )

Sobre a luz do sol se esconde
Uma luz ainda mais viva
Por trás dele há uma estrela
Mais brilhante e colorida

Sei que és tu e não vejo
Nos meus olhos tua imagem
Estás para além do desejo
Noutra terra, noutra margem

Queria ter-te aqui agora
No meu colo, nos meus braços
Fazer de ti minha aurora
A rainha dos meus paços

terça-feira, agosto 30, 2005

Verdades

Se andas a procura de verdades com uma lupa, o mais provável é que encontres verdades muito pequenas e insignificantes;

Se andas à procura de verdades com um telescópio, o mais provável é que as encontres demasiado grandes e indecifráveis;

Faz como eu; senta-te num banquinho e mira a linha do horizonte; lá encontrarás verdades à tua medida.

segunda-feira, agosto 29, 2005

Deixam-me agora os fins-de-semana de corpo cansado e alma leve. Na cabeça, uma espécie de ressaca, mas daquelas de vinho bom, que não mexem com mais nada do que com a noção da realidade circundante, que criam uma espécie de almofada aos sons, um sublinhar nas cores, um brilho extra nos brilhos reflectidos do sol.

Ando feliz, e essa felicidade parece-me chocar, embora mansamente, com os cinzentos quotidianos deste país deprimido. Ando feliz, e é quase uma comichão na consciência. Há uns meses, poucos, escrevi isto. Como ando numa de exorcismos, cá vai mais um poema triste.

No meu país deprimido
Já não doem dores profundas
Só gemem almas ausentes
Batem corações doentes

Perdidas gestas d’outrora
Já sem esperança a navegar
Afogada a velha fé
De partir para chegar

Adeus, adeus, glória escassa
De dominar meio mundo
Está vazia agora a taça
Repousamos-lhe no fundo

Olhamos d’olhos vazios
Ainda o céu azul brilhante
Cosemos de pobres fios
Uma memória inconstante

A cruz numa mão
A espada em outra
Rasgámos a comunhão
Por uma trilha sangrenta

Agora a força passada
Está ao canto envergonhada
Sonhamos na mesma língua
A morte da caminhada

sexta-feira, agosto 26, 2005

Canções e Alegria

A Maria diz que hoje acordei a cantar; ontem alguém achava a bloguice triste, deprimida e deprimente. Vai uma canção de fim-de-semana, que escrevi vindo da Gala, no comboio para Coimbra. Era onze de Setembro, eu estava a abarrotar de Xanax; em casa soube; a tragédia acontecera à minha frente, quando eu olhava o Atlântico. Ficou-me sempre esta trova, feliz e drogada, associada às funestas torres. Talvez solta-la aqui me mate algum fantasma.

9/do onze ( a NY )

Na praia da Gala
Bem juntinho à Cova
Está-se bem ao sol
Como o caracol

Na praia da Gala
P’ra lá da Figueira
O Mar é bem manso
A Onda ladeira

Vim pr’aqui de longe
Demorei-me às horas
Valeu bem a pena
Penar as demoras

Há mulheres bonitas
Crianças brincando
Homens a pescar
Há o Mar tamanho

E aqui estou eu
A mirá-lo azul
Sonhando meu Sul
Adiado e belo

E aqui estou eu
Meigo e delicado
Comprimido Malva
Foi-me receitado

Vou-me embora já
À hora do Chá
Foi bom ter cá vindo
Voltarei sorrindo

Vou que tenho d’ir
À Coimbra Branca
Ver a torre altiva
Citadela Branca

Onde irei estudar
A mãe das ciências
A Filosofia
E compor cadências

Que quero de versos
Montar meu futuro
Que quero de mim
Construir um muro

Onde colem cartazes
Onde pintem cores
Onde namorados
Escondam seus amores

Construir sementes
Pô-las germinando
Num vaso pequeno
P’ra ganhar tamanho

E se nunca crescer
Nunca tal semente
Nunca serei eu
O que tal lamente

Que p’ra mim são belos
Os meus versos lindos
E a Filosofia
Que fique p’ra tia

Adeus então Gala
Bem perto da Cova
Vou à tal Figueira
Depois vou no Lar

Ver o pôr do sol
De um belo balcão
Findar mais um dia
Fica esta canção

E se não ficar
Ficará alguma
Que o povo qu’é meu
Não é de calar

As gargantas seguem
Só muda o rifão
Poetas são muitos
Só uma a Canção!

Matriz

De domingueiro fatinho
Lá se ia à tal Matriz
De domingueiro fatinho
Lá se ia à tal Matriz

De socas e de tamancos
Rezava o povo feliz
Rezava o povo feliz

Para afogar os maus prantos
Lá se ia à tal Matriz
Lá se ia à tal Matriz

Não há Missa nas Capelas
Hoje não não é Domingo
Capelas são todas belas
Hoje sim e ao Domingo

Para afogar os maus prantos
Lá se ia à tal Matriz
Lá se ia à tal Matriz

De socas e de tamancos
Rezava o povo feliz
Rezava o povo feliz

O seu Padre Apregoava
Depois de lido o Latim
O seu Padre Confessava
Depois de saber assim
Depois de saber assim

No corpo maciço de Granito
Lá puseram azulejos
Lá puseram azulejos
Fachada ficou a mesma
Fachada ficou na mesma

No corpo maciço de Granito
Já não mora um São Cristóvão
Engradado ai ‘está d’andaimes
Ai o Santo do Caminho

De conclusão a tirar, desta trova algo manca
É que Fé não têm lugar, não aonde não pertença
Rezo eu p’ra mim baixinho, orações das muito minhas
Rezem vocês lá as vossas, contando pelas continhas

No corpo maciço de Granito
Já não mora um São Cristóvão
Engradado ai ‘está d’andaimes
Ai o Santo do Caminho

quinta-feira, agosto 25, 2005

Na pausa que divide o passo
No intervalo ínfimo que separa os átomos
No instante imperceptível que rompe os instantes
No momento impossível que separa o raio e eu vê-lo

Estás tu

Nos interstícios, nas fissuras, nas pausas
Estás sempre tu

És a união de todas as dimensões
O fulcro de todas as alavancas
O centro de todos os círculos
O fim de todos os meios
A razão de todos os argumentos

És

Sem adjectivos nem conclusões
Apenas És

quarta-feira, agosto 24, 2005

Um dia após

E hoje, que já não arde perto do meu berço, uma espécie de dor, ainda cheirando a fumo, ainda recoberta a cinza, queima ainda por dentro. No esqueleto gris, no negro do chão calcinado, moram, eu sei, as faustosas sombras das futuras árvores. Este fogo não é o fim. Mas a mágoa, o medo fundo que me chegou por contágio dos medos alheios, deixou a sua marca de garra afiada, o seu odor no meu corpo. Um dia, em menino, plantei uma árvore, num 21 de Março remoto. Vou tentar plantar agora em mim uma mata pequenina, e cuidar dela, e jurar-me que jamais arderá.

terça-feira, agosto 23, 2005

Arde

No saltar feroz da chama
Ardem montes, ardem vales
Ardem memórias antigas
Ficam de cinza meus males

Já nada resta de mim
Nesta dança ardente e feia
Só saudades de por fim
Ver só terra, só areia

Quero ao verde detestar
P’ra não mais o ver arder
Quero cinza mi bandeira
Já esquecida da fogueira

Labareda, labareda
Arda a mão que te soltou
Não te apagues em su alma
Rói-lhe a carne até ao uivo

Ring of Fire

Minha terra cercada
De chamas altas
O sol esvanecido
Fumo, muito fumo
O cheiro penetrante
Enjoativo
A cinza a cair
Uma neve obscena

E a Universidade
Sobre a sua colina
Parece hoje mais
Um bolo de noiva
Que alguém se esqueceu
De cortar

Uma noiva fugida
Deixou minha terra
Ao fogo
Um noivo atordoado
Não tem lágrimas
Que o apaguem

E lembro
De muito longe
O cheiro eucalipto
De Vale de Canas

sexta-feira, agosto 19, 2005

À Lésse ( em pé-quebrado )

De uma promessa empenhado
Saem da pena estas rimas
De meu coração devotado
Saem umas atrás d’ outras

Versam sobre o nobre Cão
Animal belo e altivo
Todos lhe votam estimação
Amam-no morto ou vivo

Fiz de promessa soneto
Falta espaço na estilística
P’ra cantar tantas virtudes

Fica assim curto o canto
Homenagem pouco artística
Viva o Cão, muitas saúdes!

Divertimento em Dó de Mim

Tenho de aqui pôr letras
Pela saúde da Estética
Escrever assim umas tretas
Alargar um pouco a Ética

Não gosto do verso a metro
Mas volta e meia sabe bem
Nada pensar de Concreto
Rimar também com também

Empilhar rimas sem tino
Só para apurar a técnica
Poetar só por instinto
Por mera pose atlética

Mostrando o músculo do verso
Deixar p’ra depois la mente
Ser como as contas do terço
Que nada são sem o crente

Construir só a fachada
Com artifícios barrocos
P’ra depois fica adiada
A literatura dos mitos

Que se lixe o conteúdo
Também já está tudo dito
Para a história já não fico
Não nasci para Eleito

Nasci para empilhar rimas
Aleixo do verso coxo
Rimas que rimem com rimas
Coxo que rima com coxo

quinta-feira, agosto 18, 2005

Homem Nau em Própria Cuna

Pela cabeça tratado
Como de cãibra ou ferida
Cuidadoso, medicado
Sigo indo pela vida

Doente de minha mais alta
Parte, orgulho magoado
Não, a mim não me faz falta
O esquecido e o perdido

Agora é grito que lanço
Como pedra a cão vadio
Já, hoje, sem balanço
Salto sem mirar vazio

Deixo p’ra trás o talvez
Curvo a recta, invento a vez
De ser eu em próprio espaço
De ser eu o meu abraço

Solto enfim do cais errante
Navego no meu destino
Tradição, o qu’era ante
Mim perdi, e está perdido

Vou enfim voo
A asa da gaivota nómada
Sem ter terra nem ilhota
Voo por fim vou

Mais, só quero luz e ar
Mais, só navegar
A jangada imaterial
O vazio temporal

Zero afinal é nada
E do zero não parti
Anda, anda, onda amada
De ti eu nunca fugi

Do algarismo ao número
Vou fundar nova colónia
Enche-la com mi memória
Prenche-la com meu húmus

Estou farto da lição técnica
Que a experiência me ensinou
Vou apalpar os futuros
Com mão de quem nunca amou

Basta, basta, basta
Findou o antigo eu
De tudo o que dele resta
Vou construir o que é meu

Tornear-me-ei tronco virgem
Em volutas de mão minha
Serei a táctica selvagem
De ser arma e ser rainha

Vou, irei, serei
Só não sei se amarei
Amarei em costa nova
Criada de minha Lei

É esta a palavra
Escrita como é próprio e bom:
Sou ser serei
E serei em próprio tom!

Outros, a entrada lhes é negada
Abram eles suas portas
Entre este zero e este nada
Vivo Eu com minhas Notas

Pautado este papel
Ele é minha sinfonia
Sem maestro nem orquestra
Sem procurar sintonia

Sou ser serei

Até um dia ser


Escala aberta como todas
Nego a mim o equilíbrio
Alma minha não perdoas
Pois nada te é devido

Não sou do nada partido
Sou inteiro e inda justo
Devo a mim o tempo ido
Não em preço mas em custo

Serei eu de mim batido
Templo de minha fé una
Ninguém mais esta convidado
Homem Nau em própria Cuna

quarta-feira, agosto 17, 2005

Da Liberdade, do Chocolate, da Metafísica, ou A Relatividade Segundo Schubert

Nestas tardes vareiras em que nada faço senão esperar o fim do dia compondo os meus versos neste teclado quase pianístico só me salva a música. Auscultadores amigos companheiros camaradas desta luta contra o diktact do relógio, os sons forram-me o coração de pequenas coragens, de pequenos choros, de pequenas alegrias. Assim passo as horas vazias, às vezes lembro-me de ti, às vezes as cartas dão-me parceiros imaginários ainda que virtualmente reais, às vezes olho o tecto e nada faço, fumando cigarros como quem medita.
Hoje tem-me mantido companhia Schubert, é lindo o seu octeto e assim passam mais horas e eu fico mais perto de sair daqui desta mansarda. E penso Pessoa e meninas e chocolates sem nenhuma, mas nenhuma metafísica, e de como ele não podia como eu partilhar a companhia de génios enquanto burilava os seus versos, onde teria ele chegado com um Pc e auscultadores. Daqui parto para a admiração de mim e estrago tudo, mesmo tudo, porque eu li a Tabacaria e sei que Pessoa é um génio do tamanho de Schubert e eu não tenho ninguém para me compor.
E assim descomposto sei que sozinho vou ficar, sempre como é obvio na companhia de génios que coleciono para ver se é contagioso que o que eu quero mesmo é que sejam cinco horas. Que o que eu quero mesmo é ser um génio póstumo que dê para ouvir em auscultadores e consultar em Pc's mas não agora que a minha vida é muito confortável. Só me incomoda esta dependência do ponto, este absurdo de vida laboral em ponto morto e às vezes queria mudar ao menos virtualmente e comer chocolates com metafísica ou uma truta em Viena.
Segue este octeto em seis partes como a minha mãe pariu seis filhos e eu sei que tenho o meu lugar e gosto dele só que às vezes são estreitas as paredes e pequenas as portas e eu queria como naqueles versos mais ar mais luz mais vida. Luz, quero luz, dizia o Chico e eu também sou assim a modos que obscurecido, como se aos meus olhos só se chegassem sombras. Sei o que sou e por enquanto isso basta-me, não sei é o que serei, e isso angustia-me, encolhe-me e inibe-me.
São três e meia e vou parar de Schubertear. Virei-me para o Tango, que se me humedecem os olhos do fumo dos cigarros e Tango é noite, cabarés e fémeas admiráveis. Já estive em Buenos Aires na década de vinte, levou-me lá o Pratt e eu gostei. Tinha uma banda sonora mas perdi-a, mas não faz mal, as saudades que tenho dela soam-me também muito bem. Também já consumi Gardel às carradas e as suas colondrinas ainda me esvoçam no coração. Mi Buenos Aires Querido. Este, Astor, apesar de exilado manteve toda a vida o som da sua terra. Libertango para Ti, dedilhando deves estar no céu.
Assim se me passan los años, aqui na minha mansarda, sim, porque ela é de todos portanto também é minha, a vantagem da Democracia é que é bela na sua idiotia. Lembro agora quando descobri que colectivo não queria dizer de todos, e o espanto que tive de saber toda a vida colectivo. De quase todos, da maioria, do lado maior e mais pesado; pois quando uma palavra basilar de todas as lutas não significa o seu significado, a subversão estava instalada no coração das maiorias e no âmago das minorias. É bonito, um bocado idiota, mas bonito.
Tanta frase não é habitual, mas o descompassado bandoneón carrega comigo por estas linhas retrocidas apesar de direitas e assim provo a minha dissemelhança com Deus. Criatura distinta, com maneiras próprias, rezo como já disse orações que afinal são gramáticas pedindo quem sabe compilações futuras, mais luz. Que se eu quero alguma coisa é Paz e Amor para mim e para os meus nem que isso signifique a minha expulsão do colectivo como eu tão recentemente descobri. Que são quase cinco e já me cheira a liberdade provisória ainda bem que este país tem Leis tão brandas, condenado estou por 36 anos e nem a meio da pena já tenho saídas percárias.
Agora é mesmo o fim, pus o Piazzolla no Libertango outra vez para acabar em beleza, e lembro-me mesmo a tempo de um frenético Paris onde ele morreu de saudades e de uma estátua que era menor, bem menor mas igualmente bela.
.../02/05

Cinza

Cinza, o céu, e desta vez não é de fumo; ouço um Coltrane colheita de 1964, e o saxofone tenor enche-me de notas suaves. Na estranheza entranhada do meu amor novo, nada me saí ao papel, não tenho palavras, mal alinhavo frases. Secou-me, o meu amor novo, e é para ela que me guardo, numa fidelidade arcaica mas assumida. Ai amor dono de mi lengua, viro-me para ti meca todas as vezes do dia.

terça-feira, agosto 16, 2005

Estátua

E os redondos do teu corpo
Deram volta às minhas mãos
E o peso do teu peso
Sobre mim
Permanece intenso

Grita uma boca que desconheço
Dentro de mim
O grito quase doce do gozo
E escama-se-me a pele de coçar
De ti o cheiro, a presença cutânea

Estou cheio da memória de ti
E não estou cheio
Nunca estarei cheio

Vou erguer-te uma estátua de versos
E pô-la, nobre, altiva, rara
No parque das memórias perpétuas
E vou sentar-me à sombra dela
contigo

segunda-feira, agosto 15, 2005

Toque a toque

Em dois dedos de conversa
Trocamos as nossas línguas
E na fome das palavras
Matamos da fome mínguas

E em bocas já coladas
Pelas sílabas, pelos sons
Nasceu, devagar, gemendo
Um amor quase tremendo

No frio de um mundo novo
Ainda a medo, lentamente
Nasceu um amor azul
Sem ter Norte, e sem ter Sul

Toque a toque vai crescer
Como planta amada a vento
Assoprado e retorcido
mas belo, perene, sólido

sexta-feira, agosto 12, 2005

Alelo II

Como matar uma hora
Sem correr sangues nem nada
Como fazer correr tempo
Sem motor e sem montada?

Contar carneiros, sem pasto
Assobiar, e sem fôlego
Sonhar um caro repasto
Incendiar um sol posto

Deixa-a ir, devagarinho
Penso eu, p'ra mim sozinho
Há mais horas p'ra queimar
Nos futuros qu'há d'haver

Subitamente

E subitamente apeteceu-me escrever - Amor! dotado inclusivé de exclamação.

Psicho

E as portas do Metro a fechar lembram Hitchcock
E as pombas Os Pássaros
E uma Intriga Internacional
Sou eu

Sou tudo
Camaleónico ser que se molda à paisagem
A gota de chuva
O som da voz
A imagem

Lisboa

A sinfonia rendilhada dos Jerónimos
A simetria quadrangular do CCB
O Padrão que aponta a terras já descobertas

O Tejo, a Torre, o Bugio, o mar

Lisboa

Eléctricos Amarelos
O sol Amarelo, forte
A Gente Formiga em intermináveis filas
O azul do Céu, belo e constante

O som da água regando Verdes
O som ocasional dos rádios dos carros
O som constante da vida a ser vivida
Nas bocas, nas gargantas de quem passa

Lisboa

Terra mítica feita de terra
Terra grande feita de rio
Terra eu que fui
Passado tanto
Futuro todo

quinta-feira, agosto 11, 2005

Sol e Rosa

O sol da tarde entra pela janela, filtrado pela persiana que o vento balança, suave. Ouço Ben Harper: the stones from my enemies this houns will mend, but I can not survive the roses of my friends. Penso a Rosa, o poder destrutivo da Rosa Branca. Penso-te.
Não sabia lá a muralha, juro. Não sabia da Rosa a filiação militar. Espinho e flor, beleza e dor. Desconhecia o poder da Rosa.
Agora sei. Sei-te. Um pouco somente. O suficiente para te temer o espinho, o suficiente para te amar o cheiro. Rosa. Branca. E a paz da cor da paz, da cor do sol filtrado pela persiana, instala-se em mim como se um gato macio e meigo me tivesse subido ao colo, e o seu calor suave recorda-me. Recorda-te.
Não sei enviar Rosas electrónicas. Temo também a nossa próxima Rosa. Vai então só um afago doce, um beijo quase nada por trás da tua orelha, e um quero-te sussurado...

Beijo

No meio do serviço acumulado por meio Agosto de incúria, entre um ofício para a Junta e outro para a GNR, entre um muro que cai e outro que se ergue, não resisti e tirei três minutos para vir aqui mandar-te um beijo. Um Beijo.

Céus

Sob céus cambiantes
Caminhamos a futuro encoberto
Combinações sempre mutantes
Buscamos o longe cada vez mais perto

Ao estender de uma mão
Tocamos mais, cada vez mais
Ao pé dos olhos, ao pé do coração
Buscamos o longe até ao jamais

Nasce o dia novo do Homem novo
Transcende passados cada vez mais lépido
Abraça tantos mundos no seu peito tépido

Alcança as auroras num furor severo
Come os amanhãs com apetite fero
Alimenta a alma plena de futuro

quarta-feira, agosto 10, 2005

Uns versinhos maus

Dá-me a mão que a quero tua
Faz de mim o que quiseres
Dou-te o sol ou dou-te a lua
Faz-me o livro dos sabores

Cozinha-me enquanto vivo
No teu ventre fogo ardente
Faz de mim o manjar novo
Ou velho caldo somente

Sê tu a Pantagruel
De culinárias bizarras
Mistura malagueta e mel
Nas tuas coxas cerradas

Faz de minha língua seca
Colombo de mundo novo
Pincela-me com o tal ovo
Só te deixarei carcassa

Marabuta esfomeada
Serás tu a minha selva
Em combate por picada
Deixar-te-ei devorada

Tenho uma fome de ti
Maior que a das Etiópias
Chega-te só um pouco aqui
Sê meu jardim de delícias

Dou-te o sol ou dou-te a lua
Para correres neles nua
Que meus olhos também comem
Que minhas mãos também ouvem

Faz de ti novo rosário
Ouvirei a tua prece
Percorrer-te-ei as contas
Com a Fé de quem carece

Dá-me a mão que a quero minha
Apertada à minha palma
Sê tu a lenta Rainha
De que alimentarei a alma

Que tenho fome de ti
Maior do que as do Sudão
Chega-te só um pouco aqui
Vêm saciar-me a paixão

Trás contigo os condimentos
Que a natureza te deu
Não penses em sentimentos
Meu coração é só teu

Canibal serei de ti
E para ti se me quiseres
Vamos matar estas fomes
Com velhos novos saberes

Seremos na refeição
Eu apetite tu gula
Vem devorar-me a alma
Vem depressa qu'ela é tua

6 e 7 d'Agosto ( a M. )

No hoje que já foi ontem
Vi na luz da madrugada
Uns olhos que os meus fitavam
Com a chama nova e rara

De um gosto recém nado
E uma boca mal provada
Falava palavras doces
Em língua reencontrada

sexta-feira, agosto 05, 2005

Das palavras

Das palavras como tijolos
Que constróem meus arquitectados versos
Somo números que retiro a plantas
Precisas

Alicerce, parede, telhado
Tenho aos meus versos o amor pedreiro
Do que constroí, com suor e argamassa
Altivo edifício

Ergo-os no céu antes plano
Amarro-os aos ventos
Exponho-os aos olhares de quem passa
De quem os habita
Mesmo que seja só eu o fantasma desses sítios
Mesmo que mais ninguém sonhe poentes debruçado em suas janelas

Meus arquitectados versos
Mesmo os mais espontâneos
Alicerce, parede, telhado
Amarrados a amor pedreiro

No meu cérebro enclausurados
Recuperam liberdades matraqueados por estes dedos agéis
Vão para o ecrã olhar para mim
Com olhos embaciados pelo brilho de uma luz nova

Olha, olha quem nos fez acotevelando-se uns aos outros
Olha, olha donde vimos sorrindo meio imbecis de serem outros

Ai meus arquitectados versos, de planta precisa nascidos
Ai palavras tijolo argamassadas a gramática e rima
Nasçam p'raí à medida da minha vontade escrevinhante
Tapem o sol amarrados aos ventos, sejam vistos em esplendores d'azulejo
Em rigores de telha e ferro forjado em varandas proeminentes de esperança

Eu, parteira pedreiro, irei, na medida de meus dedos
Na velocidade meiga de vos pensar
Dar-vos irmãos enquanto viva
Nesta termiteira sou rainha de inumeráveis ovos
Alimentado a vós protegido por vós, preso aqui

Mas mesmo assim capaz de liberdade
Mãe impossivelmente masculina das minhas letras
Não creio no sexo da escrita, não creio anjos meus versos
E Deus, no adeus sempre presente, nunca me expulsou de nenhum lado

Assim arquitecto de termiteiras de tijolo
Alicerçado na convicção da verdade de mim
Sou mãe-pai dos meus versos
Assim os amo e os solto ao mundo
O mundo estreito da minha convicta liberdade

quinta-feira, agosto 04, 2005

Dois sonetos

I

Tento no ritmo do verso
Dar sentido a esta vida
Enquadrar o Universo
Em quadrícula repetida

Parece mágica a rima
Dádiva de um Deus Mudo
Ao poeta cai de cima
O Dom de dar voz ao mundo

Mestre da escala ele ordena
Sons, andamentos, as cores
Monta a populosa cena

Em Teatro de amadores
Serve de batuta a pena
Servem de pretexto as dores

II

Peça a peça vai montando
O simulacro de Tudo
Para sempre construindo
Pelo mundo um outro mundo

Tira da realidade o que lhe convém
Maltrata a verdade porque lhe quer bem
Soma-lhe bondade, alegria também
E no fim saudades do que já não vem

Cria um mundo novo a cada palavra
Faz erguer basílicas nas frases que lavra
Cinzel a caneta, o maço a retórica

Os olhos gaivotas de uma ilha mítica
Voam como querem com a asa lírica
São o que desejam e já nada os trava

quarta-feira, agosto 03, 2005

Fadocanção

Ó água de meu Mondego
Leva-me de pronto este pranto
Lava-me esta cara quente
Com tuas águas de espanto

Ó água de meu Mondego
Dá-me agora um novo alento
Seca-me rápida a fronte
Muda-me já este vento

Que as águas que em mim correm
Quero pôr hoje em sossego
Que as lágrimas que por mim escorrem

Trazem-me o coração cego
Destas máguas que me prendem
Liberta-me ó meu Mondego

Rex

Ao sair de casa, no ar condicionado da cervejaria, ouço alemão, viro-me ao ecã. É o Rex. Ele há dias que a minha vida parece cheia de cães.

Figueira, Furadouro, Rocha, Pêra

Era outro, o Mar
Outra a suavidade de Paredões

Foram as minhas primeiras cicatrizes feitas
Na sombra veloz Veloz
De algo querido

Hoje já não olham mesmos olhos
Já não sobem mesma altura
Óculos, visão dupla que me privas

Ai, do Mar
Ai de sua cor, verdadeira

Verdes, as minhas lentes de Verão
Sonham Primaveras d'águas quentes

Algarves outros, suis longínquos
A mesma água, de morna arrepiava

Mas foi na Cova que me cortaram antes
Mesmas águas

Figueira

E na estação nova olho mais uma vez os pombos e irrita-me a sua subesserviência; cabeças baixas a rezar a eventual migalha. Dantes, só havia pombos nas praças grandes. Fugiam das pessoas em bloco, com um som largo de asa e medo. Agora mendigam. Pobres pombos; pobres praças; pobres estações.
D'arrancada, depois da inevitável espera. Larga daqui, comboio, quero o Mondego à janela. Depois, os campos verdes de Montemor; quero ver garças hoje, comboio, quero ver garças; quero esquecer a servidão dos pombos.
Os campos de arroz agitam-se no vento em matizes de todos os verdes; um tapete.
Agora mar e praia, agora um vento de miséria que arranca a areia e a chuta para os olhos em pontapés de gozo.
E volto para trás; também já vi o mar.

segunda-feira, agosto 01, 2005

Derreter

A derreter na boca de desejo crónico
De tua boca o sabor irónico
Das lembranças fazemos cofre o coração
Das palavras ocas cavernas de Ali Bábá a minha boca
Tesouros, tesouros, que guardo para ti e de ti
E sabendo sempre mal guardados
Os pedaços de meu corpo erm ti largados
Esqueceste já a palavra mágica que me abria
Lambo os dentes com perícias de dentista
Tentando detectar a mais pequena bactéria ainda tua
É vã a busca na ponta desta língua só há papilas saudade
Morreu há muito teu sabor intenso, teu carnal incenso
Às minhas mãos já não morre a tua pequena morte
O gozo desses dias já esqueceu o peso dos teus seios
E é soó de anseios o jogo que joga minha língua nos meus dentes
A minha romagem a este museu de ti
Volta a volta das danças antigas não volto a ver
Nada senão a ténue melodia que gemias para mim
Os teus olhos baços de ter ido e ter voltado
Na cavalgada fantástica de um corcel alado
Resta à minha cabeça agora triste
O saber de ti mais de que muitos
Saber-te percorrida, mapeada
Território, fronteira, andada estrada.

As vezes espero que um isqueiro falhe para poder encher outra boca de fumo

Era bela
Um corpo perfeito
Acendeu-lhe, o isqueiro
Fiquei triste e acendi eu um cigarro
Solidário nos sabores não partilhados

Mexia-se como uma pantera mansa
Toda curvas úteis
Toda dentes e garras ocultos
Eu, como sempre a presa indefesa
Não iria mais uma vez ser devorado

Não era a hora da refeição da bela pantera
Era hora de encontrar companheiro
Olhava lado nenhum
Segura de ser o destino dos olhos de todos

Era bela

E eu olhei-a como todos, ciente de não ser a minha hora

Saiu depois, felinamente
Não me olhou
Trazia atrás companhia, não precisava

Mas algo me disse no seu movimento ondulante
Que quando fosse hora de comer eu poderia candidatar-me a vitima

Desde aí que sinto seus dentes na garganta
Uma mistura de sangue e sede
As garras nas costas
Uma mistura de desejo e medo