quarta-feira, novembro 30, 2005

Twain, Wilde, Pessoa, Kurtzman e Camões


Hoje nasceu Mark Twain e morreu Oscar Wilde. Um em 1835 e outro em 1900. Um morreu no meio do sucesso, o primeiro e mais aclamado escritor profissional Americano. O outro, o último dos Românticos e o primeiro dos Modernos, no meio da miséria e da infâmia. São curiosas as coincidências. Há um livro de contos de Twain, que eu conheço numa edição de capa vermelha. Lá dentro, um Diário da Mãe Eva, outro do Pai Adão; absolutamente extraordinários. De Wilde, para fugir ao Retrato, A Importância de Se Chamar Ernesto, onde o Inglês parece renda e espuma, num baile de som e sentido duplo, triplo, todo ele multiplicidade e ambiguidade. Dois dos maiores, um nascendo outro morrendo sob as mesmas luzes, cumprindo o ritual engrandecedor de trabalhar a língua e nos fazer querer ler mais, sentir mais, rir mais.

Fazem também 70 anos da passagem do Pessoa. Fica aqui uma nota. Uma vez não sei onde, por causa do "tudo vale a pena quando a alma não é pequena", escrevi "estavas tão enganado, ó Pessoa, quem me dera a alma estreita e luminosa, como as casas do Sul, a torrar ao sol". Agora já não sei. Sei que tenho um livro do Harvey Kurtzman que se chama " In the Shadow of no Towers". Pessoa poderia usá-lo como mote. Talvez só Camões reclamasse.

sexta-feira, novembro 25, 2005

A voz mais ampla

Trabalhar a palavra como coisa sólida
Como quem trabalhasse pedra ou madeira
Como quem lançasse pontes ou parasse rios
Trabalhar a palavra como som condensado

Fluida a palavra, esguia enguia escorregante
( já pegaste uma enguia entre as águas da Ria? )
A palavra é mas não está, soa e voa
( já viste a andorinha ao entardecer nas Primaveras? )

A velha metáfora do pastor de palavras
Caneta cajado tinta cão ovelhas brancas
Faze-las crescer e faze-las lãs e queijos
Poeta velho seguidor de malhas de som

Não é teu o rebanho que te arrebanha
Nas frases que burilas de nada e ar
Guarda-margens talvez te servisse
Os rios são sempre a descer, fácil caminho

A rotina do versejar em quadras
O limite do A4 como fronteira embebida
O verso pelo verso porque verso há muito
O saber verso o verso de tudo

Já não me chegam, estou cansado
Desta rotina quadrangular espartilhante
Mas mais não sei curto talento
Sonho portanto palavras mais dóceis

A voz mais ampla

quarta-feira, novembro 23, 2005

DNA

Cruzar o som e o sentido
Numa espiral de DNA
É esta a poesia

Cada palavra, um gene
Cada verso, uma célula

Engenharia genética, a escrita
Pipeta, esta folha muito branca

Estéril
Colonizada aos poucos
Pela virulenta vida

sexta-feira, novembro 18, 2005

Laço

E no fim de uma semana
Sem ter tempo nem vontade
Sai-me rápida uma linha
Sem langor e sem saudade

Palavras de som batidas
Somente tinta e papel
Cantigas sem tom saídas
Telas mestras sem pincel

Sendo a caneta pincel
Rabisco só o prazer
De compor letras de tinta
Sem nada mais a dizer

Tela branca que diz nada
Só desejo de mais espaço
Gesto que nada já muda
Nó errado que deu laço

quinta-feira, novembro 10, 2005

Palmas

Deambulam as mãos pelo desejo
O nariz pela saudade
A língua rebola lóbulos d’ orelha
Os olhos baços de ver-te cá dentro

Nas transparências da vontade
( Que me lês livro translúcido )
Abro braços de abraçar
Sinto fogos sem queimar

Amores deferidos sonham
As permanências futuras
É vale que ecoa a cabeça,
Transporta teu nome e repete-o

E assim meio perdido
Meio coxo, meio nada
Aguardo, a areia das horas
A correr nas minhas palmas

E assim meio encontrado
Meio direito, cheio, pleno
Sei a hora de saber-te aqui
Apertadas mãos nas minhas palmas

Foge ou vem Tempo
Tua força é sempre a mesma
Todo o tempo sem ela
É tempo que leva a ela

E é circular a vida espiralada
Lembra a dança o minuete
Agora longe logo perto
Seguindo vamos em frente

Patamar de Sábado

E é na quinta que começa a descer a semana, como carrinho de rolamentos desembestado ladeira abaixo. E chegado, lá abaixo, nunca se sabe como irá travar o tal carrinho. Por vezes vêm carros a subir, outras parte-se a corda da direcção e vai ele de carrinho de encontro a um poste, um portão, um muro. São assim as quintas.
As minhas semanas são um bolo crono-geográfico, limitadas no tempo e no espaço por idas, vindas, pausas, picos e vales. A juntar a isso a minha doença, que é suposto ser bífida como a língua das cobras e lagartos, o que me leva ás vezes a dizer cobras e lagartos de tudo e de nada.
Venho para cima ao domingo, vou-me abaixo na segunda, terça é segundo dia sem ti, quarta nada, e noves fora quinta, sexta é dia de descer a sentir o coração subir, sábado espécie de oásis e domingo dia de voltar a sentir-me camelo.
Na circular semana que acreditamos redonda, com princípio, meio e fim, nota-se porém um sentido comprido rumo ao futuro, e os dias não são velas de moinho, nem rodas de nora, mas degraus de escada; e ninguém que eu tenha ouvido, lido ou pressentido sabe se a escada desce ou sobe.
Na Feira do Espirito Santo havia um carrossel que girava, subia e descia tudo ao mesmo tempo. Depois acabava e começava outra vez. Só que aí podíamos trocar do cavalo para a zebra, da zebra para a girafa, e até havia uma espécie de chávenas que rodavam dentro daquela roda toda. Entontecia. Mas até aí a metáfora é imperfeita porque o carrossel tinha dono, e desmontava-se, e para o ano iria haver mais.
Algodão doce, pipocas, matrequilhos e barracas de tiro. Eu continuo a acreditar no Espirito Santo, nas coisas boas que traz. Eu continuo a acreditar que a quinta é a descer. E deixem-me acreditar que a escada sobe.

terça-feira, novembro 08, 2005

Café

Vinhas devagar, como todas as manhãs, com ar cansado. Eu esperava por ti como todas as manhãs, sentado no café a beber café. E pensei na ironia repetida de aqui estar todos os dias à mesma hora, a fazer a mesma coisa, a esperar por ti. E pensei por que esperava e não soube responder. E pensei o que esperava de ti e não soube responder.

Bom dia, repetimos, e sentaste-te de novo, e de novo um café também pediste. E eu senti o vazio que emanavas e o fascínio do abismo atacou-me. De novo. Mas não saltei. De novo. Senti o risco murmurar-me ao ouvido palavras doces mas não o quis ouvir, e pedi mais uma bica. Tenho sono. Tens sempre sono. Manhã após manhã e nunca mais é sábado, manhã após manhã e nunca mais é domingo, manhã após manhã e nunca mais chega segunda para te ver de novo com o teu ar cansado. Bom dia. Bom dia. Café.

Fumas demais. Falo demais e nunca digo o que penso. Corro demais e nunca chego em primeiro. Quem foi ontem? Ciúmes. Dor pretérita por na manhã seguinte saber que não fui eu na noite passada. Paixões. Noites em que sonho manhãs em que chegaremos juntos e em coro pediremos café. Mais um. Faz mal ao coração. Faz mal ao coração esta espera constante. Ansiedades. Penso demais. Café. Dá-me um cigarro. Dá-me um beijo. Outro dia. Mais um dia. Bom dia. Bom dia

quinta-feira, novembro 03, 2005

Canção

A bússola desnorteada
Dá-me tudo e dá-me nada
Já não sei meu horizonte
Em Poente ou a Nascente

Não sabendo d’onde vim
Sei-me não ou sei-me sim
Resta-me então liberdade
De cumprir minha vontade

Eis eu, Mundo, aqui só
Sem bagagem ,vinco ou pó
Vê na minha carta branca
Portal para feira franca

E sem peso nem passado
Vê meu vulto recortado
Contra o horizonte plano
Uma miragem de humano

E sabendo-me caminho
Vem comigo ou vai sozinho
Sobra no tempo a vontade
Para a estrada novidade

quarta-feira, novembro 02, 2005

Finados

Sereno em mim está o amor defunto
Na campa florida por outras visitas
Anualmente é dia de finados
É suposto está romagem mórbida

Persigno-me com o gesto leve inconsciente
De um ritual alheio e entranhado
Gesto há muito ensinado agora desaprendido
Ainda o faço como que a voltear um chapéu

Saudação reflectida como cara em lago
Tremida de brisas poluída de folhas
Olho a lápide e o nome já nem leio
São memórias que já não guardo aqui

Sei-te no meu coração adormecida
Vejo-te estendida muda e nula
Penso em ti demasiadas vezes
Venho aqui demasiadas vezes

Desejo novamente um mundo sem ti
Mas é inútil rogar à surda memória
Foste vento bom na minha vela
Nas tábuas de meu barco ainda se vê o teu sal