quinta-feira, abril 27, 2006

Está Sol

Por vezes parece-me já ter dito tudo
Que à minha boca só vêm dar
Palavras fechadas
E eu queria ampliar o mundo

Quantos sentidos tem a estrada,
Quantos amores guarda este peito,
Quanto é mais,
Que resta feito?

Dias neutros, e sol
Peito oco, e par
Feita de declives me pareces
Alma
Horizontes a salto
Ou salto?

Viver a expectativa
Vê-la cumprida
Morrer?
Um pouco; morre-se sempre um pouco
Sonhar?
Um muito; sonha-se sempre um muito

E quanto às palavras fechadas
É sentar no degrau
Está sol
Alguém há-de vir abrir
Alguém ampliará o mundo

Vento

A minha cabeça é imóvel
Decidiu parar
Dir-se-ia tempo de balanço
Mas para isso é necessário balançar

Estou no compasso entre dois tempos
No vácuo que precede o vácuo
Na ideia que não se sabe ideia
No cosmos de um caos por inventar

Imóvel
Como terceira casa de família
Vivo um fim-de-semana quimérico
Que nunca chega
Ai esta vista para o mar desperdiçada
Este ar de montanha tão puro para quê

Não sou e não me penso
E já nem sequer estou
Para imóvel falta-me a noção de movimento
O que escrevo não sou eu é só o vento

segunda-feira, abril 24, 2006

Sabath

Uma vez, quando era novo, escrevi que antes nada dizer que dizer o nada; ando um bocado assim, agora. A minha vida deu a famosa revolta de 360 degraus, e eu estou desorientado por nunca ter perdido o Norte. A rectidão pode ser uma febre tão perniciosa como o vício; há muitos que se entóxicam de virtude e honestidade. Vi um pregador ao pé do Homem-estátua, no cimo das escadas do Parque Verde; pregava ( e com aparelhagem sonora ) não virado para a congregação, mas para as esplanadas abaixo, como acusando a malta que apanhar sol e olhar o Mondego era um perigo para a alma. Tive de passar por ele, e jurava que apanhei com perdigotos, mas deve ser da minha má consciência. Afinal era sábado, dia a consagrar ao Senhor. Escusava era de levar com o Senhor pelo pavilhão auricular abaixo, empurrado por uma voz tão desagradável como inconsequente. Dá-me a impressão que Deus anda a ser mal servido. Quando o deixei de ouvir, falava dos perigos da embriaguez feminina. Dei por mim a gostar de mulheres bêbadas.

quarta-feira, abril 19, 2006

Garganta Árida

Tenho dias de ter sede do passado
Como quando ando muito ao sol
Tenho essa sede

É material
Reside no céu da boca, na língua
Na garganta seca
Tusso a poeira do passado
Em latidos breves

Como prece engolida
A esperança esquecida
Volta em faltas líquidas
Em dias de sol
Em instantes repetidos
De tantos instantes perdidos

A minha memória relicário
Guarda pele ossos e dentes
O ouvido maníaco
Lembra as vozes as máquinas os bichos
Colecciona o som arcaico

Não o pode repetir a corda vocal sahariana
Os olhos simplesmente não andam para traz
Abro e fecho mãos
Sei aqui partículas de lá
E essas permanecem no meu tacto místico

E sempre a sensação de sede
A garganta árida
O passado ido
A recuperação mítica

Dias de sede
E vontade mais do que beber
Sorver a sede
E saciar-me nela

quarta-feira, abril 12, 2006

The Real Comander

Hoje passou por mim um homem carregado de um saco onde se lia “ O sono comanda a vida”. Devia trazer lá dentro um pijaminha, um travesseiro, uns possíveis chinelos. Pôs-me a pensar. O sono comanda a vida. O original culpava o sonho; mas em verdade os sonhadores despertos são frequentemente acusados de inconsciência, irresponsabilidade, cegueira, parvoíce. Nessa perspectiva, o único sonho válido é o dormido. O sono comanda o sonho; logo comanda a vida. O saco do senhor, independentemente do conteúdo, tinha razão substantiva.

segunda-feira, abril 10, 2006

Nothing More

Agora gostava de estar só
Eu e os meus versos não natos
Saber o dia
Nothing more

Agora no céu um sol quase ausência
Desce na lentidão habitual
A lua em frente sobe
E eu estou

Estar; apenas estar
Sem adjectivos
Nem objectivos
Só eu meus versos não natos
O dia que cessa

A quietude na alma
A paz cardíaca
A Primavera a brotar como sempre

Estar; não ser
Ser é para covardes de espírito
Que buscam no enquadramento
A realidade do plano

Ser é cinema, Senhores
Estar é poesia

quinta-feira, abril 06, 2006

Abril

Um Abril de águas mil entrou em correntezas; e eu, numa segunda-feira de calor ainda anormal desapareci sob o peso de uma mágoa estranha, como se alguém me tivesse ofendido e eu não tivesse ouvido bem, mas o som, mais que o teor, me moesse, me picasse, me transformasse em amorfa criatura, só com desejos de casa e janelas trancadas. Espaireci, comme d’habitude; estes moods de mi alma são como carrossel, quando estamos no melhor da volta param, e é tempo de descer e entregar mais uma ficha. Não me dá a minha natureza tempo de me habituar a mim mesmo. Homem de voltinhas, hoje aqui assim, amanhã ali assado, monótona vida que me não fixa sequer o temperamento. Do céu de um cinzento muito claro caí uma chuva miudinha e continua, a que o vento vai variando o grau de inclinação; eu, eu vou esperando que algo não mude.

domingo, abril 02, 2006

Lusa

No som do som para o som ouvir a rir sentir sem mentir; canta o meu ouvido mais que a garganta. Como planta verde em vaso terracota, cores feitas para casar. Flúi a onda quebrada em praia e o hábito de a ver diária torna-a não banal mas normal. O meu Mondego comeu a margem que tinha comido os laranjais e há uma irónica maresia em tudo isto, ponteada de gaivotas novas. Pedonal a nova ponte destruiu as esplanadas pedestres. Pedro e Inês já se chama e nova dose de ironia: A que depois de morta foi Rainha, e o Cru, mal cruzado o Rio e já fazendo estragos. E a memória do Urso entretanto ardido funde-se às boas práticas da Engenharia Lusa.