quinta-feira, junho 29, 2006

3.06

Passei três minutos com a realidade numa bandeja de Tango; deu-me para ele, esta semana. Piazzolla. Acho que ele fez um mal grande ao mundo, quando não retirou um z e um l ao nome; Piazola é muito mais fácil de escrever, e soa ao mesmo; pelo menos a este duro ouvido Lusitano, habituado à aspereza monocórdica da nossa língua materna; e paterna, já agora. Tive a felicidade linguística de apanhar no berço uma grande fatia do dizer português; o meu pai é do Sul, a minha mão quase do Norte, com pais nascidos na volta do século, quando se falava ainda com ph. A minha terra é uma Babel de sotaques, onde se ouve tudo o que é dialecto luso, e alguns estrangeiros. Um tipo habitua-se ao som soar diferente, à palavra desviante, ao ritmo inesperado da fala, da mão que a acompanha, do olhar mais ou menos velado por outras inclinações solares, morais, cívicas, culturais. 3 minutos com la realidad dura 3.06 minutos. Será de propósito, ou alguém falhou en El Sexteto Nuevo Tango, naquela noite no Club Italiano de Buenos Aires? Abril 1989, a realidade deveria ser a mesma, e na realidade, os minutos, mesmo 3, mesmo de uma precisão técnica total, às vezes descambam. A realidade destes 3 minutos é que lhe sobram 6 segundos. A realidade é que isso não tem nenhuma importância. Embora me pareça que para o Astor aquilo devia durar exactamente 3. Não 3.06. Como sombra fugadas de un cansado ballet, canta noutro cd Amelita Baltar, são estes 6 segundos; assim, fugidios, afogados, sombrios, mas reais. A pequena sombra deste tanguista solar, o peso dos dedos sobre o bandoneon mesmo antes de o tocar, a espessura do génio.

segunda-feira, junho 26, 2006

Negro

Somando tudo
Perco a conta
Às parcelas
Conto pelos dedos
Das mão que ainda te tocam
E perco a conta
Às mazelas

Dói a ferida
Então não é ferida
É hábito
Negro

E descubro um Jesuíta em mim
Que algum Marquês devia já ter expulso
Fiel a uma religião condenada

E venha mais um terramoto
Quero a beleza de um Carmo meu
A geometria efectiva
Da baixa que sou da nossa guerra
Afectiva

terça-feira, junho 20, 2006

Do Paralelismo, da Memória e da Liberdade

As virtudes do paralelismo são contrariadas pelas rectas; sendo estas paralelas, nem no imenso infinito alguma vez se encontram. Por isso, quando as afinidades são muitas, provavelmente os objectivos são muito diversos. A igualdade será impossível quando todos formos iguais, tecnicamente. Igualdade implica similitude de começos, meios e fins; mas implica também o desencontro absoluto. A não ser que descartemos a geometria da vida, e a vida assimétrica tornar-nos-a iguais e comuns. Sem rectas.

As pessoas não são fórmulas, e a serem, não são formulas um, ou dois, ou três ( as duas últimas já nem há ); são pedacinhos de matéria viva e vontade de viver, capazes de tudo e de nada, donas de um destino curto na métrica universal, mas dotadas pela cultura e pela reprodução de meios de se perpetuarem além do seu período de vida. Queres ser lembrado e influenciar além do teu tempo? Funda uma Seita, escreve um Livro, compõe uma Sinfonia; ou têm filhos e ensina-lhes o teu nome.

Ergo: eu vou, mas vou sempre sozinho; a minha vontade soberana é soberana de mim, se me deixarem, e se me deixarem, sozinho fico. A quantidade de espaço que me rodeia permite-me abrir os braços até as mãos deixarem de se recordar uma à outra, e as catedrais de ideias nunca deixarão de ser eregidas. Agora, nos pináculos, erguidos os pavilhões da liberdade absoluta, provavelmente não haverá olhos que os contemplem.

segunda-feira, junho 19, 2006

Feliz

Emaranhados de tronco e folhas
Despojadamente entesouro com a minha tesoura
Corte após corte na carne verde e castanha
A jardineira alma embrenhada nos canteiros

Simbiose de homem ferro lenha
Dão-me cheiro cor sombra
Dou-lhes trabalho
Só a tesoura parece defraudada
Enferruja lentamente e cada dia geme mais

Mestre de Jardim chama-me o azevinho ao picar-me
Coraçãozinho de Jesus as rosas rasgantes
E outros armados em árvore de tão grandes
Fazem chuvas de folhas ainda mal varri

Trepadeira de trombetas vermelhas
Não te conheço nome
Madressilvas como vos conheço o cheiro
Aqueles cactos chatos já sei
Aloé Vera vi num châmpo

Ainda há sardinheiras e uns que são os verdes
E costelas-de-adão ou patas de cavalo, a gosto
E hidranjas ou lá como se chamam, jarros
Uma laranjeira um limoeiro um marmeleiro
E uma árvore da borracha que dá figos
( Viva a Selecção )

No rectângulo de pedra na extrema
Sinto a casa aqui ausente
Um cubo de ar habitado cobre-me
A memória no sítio
O calor que sai das lajes
Tempera-me a sola dos pés
Cozinha-me com festas

Pouso a tesoura e puxo folhas
Folhas após folhas e troncos e areia e pó
Faço montes e vales de verde morto
A pilha cheira a velha dama perfumada
Um odor doce mas usado um pouco demais

Suo não muito mas suo
Chega o momento do vale a pena
E com a mangueira pinto cores frescas nas plantas
A água a avivar-lhes o cheiro
Mais o da terra da pedra de evaporar
Um jardim é um bom sítio para um nariz atento

As plantas parece que murmuram depois de regadas
Sente-se um alívio hídrico e uma dor nas costas
Então o ritual do cigarrinho sob o guarda-sol
E sentir que cinco minutos por dia sou feliz

quarta-feira, junho 14, 2006

Ena

Chove desalmadamente é Santo António a cinza do dia cobre o som de Bach. Sai-me a linha como de pesca de ideias assim estou sem tema sem cena sem nada que não seja a Suite triste que um velho recusou gravar até ser impossível adiar. Gravou-a numa Igreja Francesa como único lugar possível para um Russo gravar este Alemão. Há uma Europa de Música que é tão indesmentível como a consistência húmida deste fim de dia. Johann Sebastian Bach; Cello Suite Nr. 6 BWV 1012 D-dur; Mstilav Rostropovich. Ena.

Consequência lógica de fazer anos e dar de prenda por meu pai a mim o melhor som. O velho ficou feliz quando lhe mostrei os discos. Eu também. Há alturas que sofro de infantilismo. Mas são boas alturas, usualmente. Como esta de temperar a chuva esquisita com o som raro de um passado que tem tanto a ver connosco que impressiona. A música é um óculo virado ao ido. E trá-lo para perto; do ouvido e do peito.

Vira agora o disco; o de cima, agora a Nr. 2 BWV 1008 d-moll. Consequência da chuva, este tornar o D em d e o –dur em –moll. Devia ter prestado atenção quando me tentaram ensinar música. Não sei se Sto. António tinha ouvido, mas se tivesse, em Coimbra a olhar os olivais ou em Pádua a conversar com os peixes, assobiaria uma marchinha quando se sentisse feliz. Como em dias como este, em que Mão Santa faz chover um maná liquido sobre o Som dos Séculos. Ena.

terça-feira, junho 13, 2006

Fundação

A rigorosa linha traçada pela rigorosa mão
A desenhada letra traçada pela desenhada mão
Bloco

Arquitectura de silaba
Tonalidades de cor
Tijolo

Viga
Métrica medida marcialmente
Ritmo adquirido pedagogicamente

Trave
Abecedários antigos
Letras novas
Léxicos frescos
Palavras vivas

Abóbada
Verso verso verso
Intricadas estrofes

Edifício vocábulo
Prédio voz
Alicerce

Pináculo oco de catedral vã
Ido aos céus
Em planta

Grito mudo o grito de quem cortaram língua
E penso basilar a projecção do eu
E penso a minha sombra
E grito o gesto de quem queria ida a luz

Fundação oculta
Solar de chão
Térrea de ar

quinta-feira, junho 08, 2006

Trepadeira

Debaixo do peso solar como moeda cunhada repetidamente batido por um mar de vaga inclemente à costa flagelado de onda inconstante e sal sou o corpo mas já não sinto nem vontade de saber-me. A palavra que fabrico não é balsa de fugir à ilha de mim, nem arte vã que deixe depois de ir, é mera coisa que faço como faço outras coisas como olhar o céu reparar na nuvem procurar a sombra respirar ar porque sim ainda resta fôlego nos pulmões velhos, as mãos ainda agarram já não sabem é dirigir-me noutros caminhos que não circulares.
Tomo o rumo do passado sempre que lembro a via do futuro sempre que aspiro mas já não lembro nem aspiro; Tenho fome sede e estou cansado mas não quero nada para a fome a sede e o cansaço; quero cessar como cessa o dia apenas sem poente dramático, sem cores no céu um sol engolido por um mar azul cinzento negro e fim. Mas na minha mão que parou o gesto não há vontade sequer de cortinas, e um receio que acabar aqui seja outro começo é mais forte que desistir. Só isso me prende, acho; o medo de mais.

Valido-me a mim próprio como quem carimba um selo, como quem corta uma fita, como quem geme depois de um orgasmo. Sou que remédio um remédio paciente para um paciente crónico e a crónica não me saí, nem a desejo. Desejo? Vontade a mais de ser mais que um risco numa folha que já nem faço, um ramo a mais na trepadeira que eu mesmo podo. São trombetas vermelhas às centenas as flores da minha trepadeira, mas não soam. Fazem sombra, e caem sem ruído. Há dias que queria ser elas.

quarta-feira, junho 07, 2006

Adelaide?

Exige-me a constância verso
Constância de minha Avô
E de Camões

A minha Avô que nem conheci
Santarém naquela altura só me lembro o Sol
Era diferente o Sol em Santarém

Adelaide?

É estranho não saber o nome dos Avós
Falta uma peça
Manca-me a vida

Não tenho memória para nomes
Nem caras
Nem corações

quinta-feira, junho 01, 2006

Shinning New Machine Gun

Tenho para mim que a parvoíce é endémica à Pátria Lusa, que o sol o mar o monte o penhasco a planície, a bucólica paisage ou o rendilhado urbano ( que atinge o seu máximo nos novéis comboios da CP, desprovidos de WC ) nos pregam partidas, nos distraem, nos fazem sonhar d’ olho aberto e alma clara com amanhãs cantabiles e futuros brumosos que extraímos do filão magnifico da nossa gloriosa História. Bravo povo bravas gentes que desbravámos o mar e o trouxemos para casa connosco para o servir a quem de direito; fomos grandes, imensos, oceânicos; retornaremos a sê-lo. Parvoíce, como Tesei este texto. Assaltámos o mar porque não tínhamos forças para assaltar Castela; quando no Marrocos, fomos, depois de os ter-mos apanhado de surpresa um par de vezes, literalmente chacinados, com névoa, Rex e tudo. Entretanto, na Índia das glórias as nossas baterias flutuantes arrumaram com o invasor anterior, mas durou pouco, o tempo de dizer Albuquerque; por lá ficámos, porque os nossos barcos davam jeito ao comércio externo, até vir a Britânia com uns melhorzinhos. Aí então os Brazis: lá chegados, evangelizamos os índios que não conseguimos chacinar nas senzalas, dividimos o imenso território em fatias e começamos a oferecer viagens gratuitas ao People Africano ( na Famosa Companhia Travel Chibata ou Garrote Cá ). O que corre agora é que inventámos o Samba. Parvoíce. Porquê então este discorrer amargo, agora? Esta História, que já foi a que me contaram nas aulas ( suavizada ainda por alguns tons róseos de ter sido uma história feita de Povo, e o Povo auto-legitimava-se por Direito Histórico ), não é o relevante. O relevante é que fomos, pilhamos e fomos corridos. A nossa Glória é ter sido apanhados. Mas deixámos ferida aberta. Ontem mandámos a GNR para Timor, por Dever aos mais altos princípios da Alma Lusitana. Treta. Fomos porque a tropa quer experimentar as novas metralhadoras, para ver se matam em condições. E fomos porque foi por nossa causa que Timor é hoje independente sem ter havido o mínimo de transição entre a repelente ocupação Indonésia e a criação de um Estado de Direito. Fugimos em 1975; devíamos ter voltado em 2001, pelo tempo que fosse convencionado ( 5, 10 anos ) conferindo a Timor um estatuto autonômico igual ao da Madeira e Açores. Devia-mos isso a Timor e aos seus filhos. Agora, como dizia Pessoa “está boa a cigarreira; ele é que já não presta”.