sexta-feira, setembro 29, 2006

Saudade

O fim. Abrupto e bruto. Tudo cessa. Escuro denso; não. Provavelmente nada. Não se sabe onde começa o sentir e não se sabe onde acaba o sentir. As extremidades da vida são mistérios. Segue a luz. E se não houver luz? Não, não deve haver luz. Provavelmente o nada.

É miséria ficar. Quer se queira ou não, o que parte leva a vantagem. A sensação é de perda, quase de traição; abandono. Sempre estivestes, porque vais. Porque foste? Porque estás ida? Depois descobre-se a recordação sucedânea, e já se consegue olhar fotografias nos olhos. No dia que morreste jantei contigo. As últimas ceias sucedem-se no tempo ao ritmo inevitável das primeiras.

Faz-me falta o saber-te. Acreditavas, porém, em mais. E de uma forma estranha, o escrever-te prolonga-te, o falar de ti expande-te. A biologia da memória dá-te, e dar-te-á, uma extensão que seria doutro mundo se nós que te recordamos não estivesse-mos neste. Vencer a morte é deixar boas lembranças?

Quando aconteceu eu estava feliz. Quando aconteceu a anestesia das certezas sedou-me. As dores foram acordando com os dias, com os cheiros, com pôres-do-sol e festas de anos. Um ano, hoje. É extraordinário o peso das ausências. Doença crónica, a saudade.

terça-feira, setembro 26, 2006

Quatro Parágrafos

Tecer no som em tear de luz textos claros e escuros, reprimir a trama libertar a teia e pensar o fio como se tivesse fio. Partir pedra como se houvesse para lá da pedra e fazer com os bocados mais que estátuas ideias partidas de grito e náusea. Procurar a beleza como se seguir cânones e amar fossem remos do mesmo esquife, encontra-la e despreza-la por se ter feito encontrada.

Gostaria de ter sido um herói trágico, e agora a minha tragédia e não tê-lo sido. Gostaria de saber projectar a voz até me esquecer da boca da laringe da traqueia, ser pulmão som e ideia móvel, e agora a minha tragédia é ter-me esquecido a letra. As minhas mãos somam teclas e as frases acrescentam-se como se houvesse fermento nesta massa, mas não há. Só vontade de mais falar de mim como se eu tivesse assunto.

Três parágrafos três e paro como se a minha tragédia fosse alfabetável. Como se a minha tragédia fosse. As manhãs nascem iguais em bruma e cinza, mas pelo meio-dia nasce um sol. Há o mar, e vontade, e a consciência de tanta voz por ouvir. Há esperança de ver um dia maior, uma tapeçaria mais perfeita. Há sempre mais um parágrafo. E mais tempo. Há um labirinto nas minhas mãos, e eu sou incapaz de sair dele.

Quatro parágrafos, então. Sinto que nasci no meio e que não vou ver o fim. Sinto que amo o que perdi mais de quando o tinha. Sinto que já fui melhor. Sinto que já fui maior. As vezes esforço-me para sentir, e sinto muito. Outras pouco. Outras nada. Tenho nas mãos a chave do som, e não sei se gosto dele. Gosto mais do som que do sentido. Sou fútil. Gosto mais do sentido do que do som. Sou cerebral. Gosto mais de gostar do que amar. Sou trôpego. Sou eu, isso sei. Já não sei é se sei ser eu. Ou se me importa.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Déspota

Déspota de mim caio em Bastilhas
O peito em estilhas a cabeça cortada
Às tiras

Corre-me entre as orelhas
O som cozinhado das eras
E já não eras mesmo quando foste

Sei de mim que a vontade de ir
É a de partir de mim
Abandonar-me de todo

Sei que fugir é ilha
Porque já fugi em ilha
E encontrei-me de velho

Não nunca fui novo
Todas as minhas descobertas
Nasceram dos meus olhos

Não nunca quis nada
Que se adianta-se aos desejos
Que fosse prévio aos sonhos

Alto coração pairas tão alto
Que mesmo sendo meu nada me dás
Desce volta atrás

Quero o dia da mão vazia
Da nota solta
Da maré alta

quarta-feira, setembro 20, 2006

Convenção Métrica

Determinar com determinação a origem da vontade será provavelmente encontrar a vontade primeira. Encontrar a vontade é pronunciar o verbo. Declinar sem sujeitos nem predicados, desajectivar até ao osso. Para além do osso. A arqueologia macabra convertida em teologia, o afundar dos olhos na podridão dos séculos. Agora devia ser o importante. Não é. Passamos vidas inteiras à procura do pretexto de sermos, quando devíamos abraçar o milagre de estarmos.

Passado presente futuro é a linha, e não recusamos nunca a linha. E o passado é sempre complexo, e o presente nunca se reduz ao hoje, e o futuro é sempre material, como se já existisse. Nós somos a prova de termos existido, e de terem existido muitos como nós. Mas nada do que faço me é ditado. Mesmo quando faço tudo o que me foi ditado, sou sujeito. Mesmo quando acordo na manhã seguinte foi por que é agora a manhã seguinte. Amanhã é uma convenção métrica, ontem uma evidência inútil.

Desaprender. Gostava de desaprender. Dar um salto de gazela sobre o meu legado e aterrar não mais há frente mas no mesmo sítio agora vazio. Ser eu o verbo mas sem megalomania. Nada criar, nada saber, nada ter. Nem sequer esta consciência do tempo. Sofremos de tempo, todos. Porque passa, porque não passa, porque passará sem nós. Velhos como tudo, cremos na transcendência como se ela nos fosse estranha. E ela é nós, nossa contemporânea, nossa alma ou espírito, ou corpo; é tudo.

Acendo um cigarro transcendente; mais uma vez recordo Pessoa, e o facto de a metafísica ser a consequência de estar mal disposto. Falta-me a disciplina filosófica, a fé cega e a esperança absurda; tenho a crença que a mudança é filha do desejo, e que a presença é por si só fundamentação do ser. Às vezes basta-me. Outras não. Hoje bastava-me que o dia se fosse como se não fosse. Amanhã? Amanhã é uma convenção métrica.

segunda-feira, setembro 18, 2006

Simetria

Arriscar a simetria como se reduzir a par eliminasse a dúvida
Duvidar da paridade como se eliminar o risco fosse igual
A não arriscar nada

Tive como todos dias de dúvida
Tive como todos dúvidas do dia
No bilhete que guardo de ti
Não me é contada a viagem

Ida está ida a necessidade de partir
E ficar é a viagem nova
Ida está ida a estrada
E a necessidade é cerrar as portas à luz fixa

Caracol de cerceadas antenas
A minha espiral doméstica é tudo
Muda a estação eu não mudo
Mudo fico porque ninguém me provoca a língua

Arriscar a simetria como se reduzir a par eliminasse a dúvida
Duvidar da paridade como se eliminar o risco fosse igual
A não arriscar nada

Troco estas mãos por toques novos
Que tocar de novo é nada
Deixei a vontade de ser no andar de cima
Não me apetece as escadas

Troco estes olhos pela largura do mar
O mar não troca e ri
E larga outra onda na areia branca
Não me apetece nadar

No dia de voltar percebi que não partira
E de saco ao ombro soube-me imóvel
No dia de partir adiei-me e não fui
E o ombro vazio pesava na mesma

Arriscar a simetria como se reduzir a par eliminasse a dúvida
Duvidar da paridade como se eliminar o risco fosse igual
A não arriscar nada

No trinco da porta cerro dentes
A tentar trancá-lo a pensar parti-lo
E o pêndulo do relógio da cozinha
Não marca mais a hora passada

Fico porque sei andar por dentro da cabeça
Aprendi aqui quando ainda era
Resta-me o pensar vadio
De pensar em tudo e não produzir nada

Aprendi que o tempo
Vai dos zero aos cem como lhe convém
E se me restam mãos e olhos
Não me resta mais vontade

Arriscar a simetria como se reduzir a par eliminasse a dúvida
Duvidar da paridade como se eliminar o risco fosse igual
A não arriscar nada

Ida está ida a desejada espera
E outra espera aguarda à porta
E eu agora no andar de cima
Vou dar corda ao relógio

Esperar a nova hora nas rodas dentadas
De costas voltadas às novas vontades
Velho relógio mais que centenário
Fecho a tua caixa sobre mim

Agarrado à parede
Doze horas em números romanos
E uma espécie de saudade de mim
Conforma-me como sina aceite

Arriscar a simetria como se reduzir a par eliminasse a dúvida
Duvidar da paridade como se eliminar o risco fosse igual
A não arriscar nada

Não me sobra na cartola dos truques
Nem coelho nem lenço
Não me sobra nem cartola nem truques
E ilusões sempre me souberam a nada

Agarrado à parede do andar de cima
Eventualmente descerei de mim
Trocarei números romanos
Por desejos humanos

Embora os saiba os mesmos
A inutilidade de representar
A futilidade de ser
A inevitabilidade de ir

Arriscar a simetria como se reduzir a par eliminasse a dúvida
Duvidar da paridade como se eliminar o risco fosse igual
A não arriscar nada

E não arriscar nada
Sabendo a simetria como redução geométrica da dúvida
E a paridade como iluminação duma solidão igual à minha

quinta-feira, setembro 14, 2006

Thomäs

How many roads must a man walk donw before you call im a man cantava o Bob em 63, anavalhando os tímpanos com uma estrídula harmónica; e era harmónico. E era. Devagarinho fui dissolvendo a repugnância que tinha ao homem. Há umas semanas vi o documentário do Scorsese sobre os primeiros anos de carreira. Já me tinha deslumbrado com um cd duplo que era tudo o que tinha dele; comprei agora o Freewheeling. Estou lentamente a começar a amar o Homem. Se tivesse o azar de ter nascido na Judeia do século I era Profeta; agora é só um tremendo Bardo.

Andava a apanhar uvas no Sul de França, há para aí vinte anos. Seis Portugueses, uma Portuguesa, um Francês, um Polaco e um Checo. Os Portugueses eram tolos, o Francês era um bêbado, o Polaco falava e não dizia nada, o Checo não falava; pensávamos que não sabia. Sabia. Tinha era medo.

Pagavam-nos x francos e dois litros de vinho por dia. O vinho era mau, mas forte. Ao Domingo não se trabalhava, festa ao Sábado. O Checo não era imune. Pegou numa guitarra e cantou Blowin’ in the Wind. E Chorou. E falou. Tinha 18 anos, estudava no Conservatório em Praga. Integrado, normal, sem qualquer tipo de participação política. Um bom comunista. Um dia põe-se a ler uma revista sobre música. Sem pauta, apenas a letra, lá estavam as palavras. E ele não conseguia perceber como nunca tinha ouvido aquela canção. Depois fez por perceber, acabou por fugir pela Jugoslávia, mais uma irmã. Passou ainda uns anos refugiado na Alemanha, mas ainda tinha medo. De nós já não. Chamava-se Thomäs. Já não deve ter medo. Ainda deve ouvir o vento.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Play

Tenho o poema em pausa, o verso em stop, a rima em off, a alma um no disk. Tenho de nada os dias de compridas as noites; e cumpridas as dores; e tremidas as esperanças. Antes sabia a inevitável nota, vetusta e fiável a partitura, assinada datada imóvel. Agora rasguei a pauta. Resta-me o silêncio, saliente rochoso rompante. O peso do nada paira. A arquitectura da saudade ocupa sobre mim um oco que nem sequer é oco; oco requer casca, invólucro. Não tenho mais pele.

Nado peixe vermelho em redondos e cada volta nega-me a memória da outra, cada volta afirma-me que a próxima será a primeira. E num súbito rasgão entendo que é para isto que serve o vazio. E antevejo uma luz, um brilho. A minha pouca geometria salta-me aos olhos. E se ainda me movo, movo-me num plano. E o plano, ensinou-me alguém, é a base de toda a construção. E forçado a admitir que aspiro só pelo simples facto de existir, olho para trás, e afinal está lá alguma coisa.

Alicerces. Não me é dado o passo sem me ser dado o solo; não me é concedido o gesto sem o músculo, a ida sem o caminho. E o par que faço comigo quando me observo ao espelho diz-me que é par de mim tudo o que toco e que me toca simultaneamente. O tédio que anestesia os meus olhos que parece verem sempre o mesmo tédio é o tédio que teria de ver sempre novidade. O tédio sou eu. Agarro o tédio e faço barro dele, e se nada fizer desse barro terei barro. A minha imagem espelhada sou eu e o espelho. E o tempo que os meus olhos cansados levam até voltaram do espelho é o espelho e eu.

Eu o aquário a volta amnésica, o saber que sou e fui e que inevitavelmente serei a minha ausência. O saber-me ausência. A arquitectura de palavras imbricadas em tijolos de alma. E barro. E tédio. Faz-me falta a pele que tinha. Vou arranjar outra. Vou pedi-la ao espelho. Quero-me play.

quarta-feira, setembro 06, 2006

Definitivamente

Não é porque não acredito no amanhã que me porto como se não houvesse hoje. Ou ontem. Ontem sei eu que houve. Hoje é aqui e agora. Amanhã não sei. Desconfio, mas não sei. Ouço Summertime tocado por Parker. Sempre me soou outonal. Fui ver. Gravado em 30 Nov. 1949. Onde não diz. Provavelmente em Nova York. Definitivamente Autumn. Autumn in New York cantado pela Billie. Fui pôr. Definitivamente Outono. Definitivamente Duke.

Hoje sentado a olhar o meu canto de Ria, as árvores choviam-me folhas e a Nortada era certinha, como uma conta de muitas parcelas. Esta Estação vai mudar cedo. Mas isso é amanhã. E eu não acredito em amanhã. Nem em mim. Acredito num Summertime. Definitivamente Gershwin. E acredito nas virtudes terapêuticas do Jazz dos anos quarenta. Provavelmente devido à mistura de álcool e heroína e noites brancas. Música negra, pois.

Esta vida é uma droga, o que coloca os farmacêuticos como fiéis do Anticristo. Cristo, que não só acreditava em lírios como curava sem recorrer a pastilhas, teve como primeiro milagre o da água em vinho. Se bem que não tenha nunca sido especificado, acredito que era tinto. Ás vezes, devido à minha educação católica, sonho-me num campo florido agarrado a uma garrafa. Tenho de mudar de medicação. Ou de Fé. Ou de ontem.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Voltar

Entardece em vidro fosco
A nuvem do lume acinzenta tudo
Eu vou como sempre
Para sempre voltar

Respiro o ar difícil
Hálito ardido verde a cinza
A estação dos fogos
Nos lentos comboios

Sento a meia hora do transbordo
Sinto a minha hora de transtorno
Vou como sempre
Para voltar de novo

Docemente em círculo levo a vida
Decididamente não paro nem fico
Junto ao fumo o fumo do cigarro
E jogo a espera como jogo de sala

Antes havia comboios directos
Com janela cortina e bar
E por duas cervejas engolia a viagem
E em Aveiro não queimava as horas

Agora que não bebo nem posso
Penso porque vou e é em ti que penso
Como se fosses destino ou meta
Como se fosse por mim que ai estás

Coloco a beata no meio da linha
Com um piparote todo ele treino
São os quinze anos de Linha do Norte
A bitola perene destes dias de ida

Lá vem devidamente anunciado o trem
Lá vou devidamente entediado eu
Lá vou para sempre voltar
E sei que vou para poder voltar