terça-feira, outubro 31, 2006

Me

Atravessado de brisas o azul do céu nega a estação. A minha trepadeira perde lentas folhas num ritmo de Sul que nega a longitude, e eu, quase lânguido, espreguiço-me no sol pálido. Anteontem, a clarabóia da minha cozinha encheu-me um balde negro agoirando o telhado, e as vigas de cinquenta anos cantavam no vento baladas de adeus. O meu tecto é uma antiguidade, das não preciosas, e a minha vontade é deixa-lo ruir numa cascata de pó e telha.

A casa velha de mais de século é um forte de xisto com paredes de metro. A fachada de azulejo geometricamente castanho é centrada pela varanda de ferro verde, e as portadas duplas são coroadas de vidros coloridos, tendo no centro dois corações azuis. Bela e fria. A true hart is a blue one. E aqui são dois. A conotação do azul não é retroactiva, mas o meu pobre coração anda triste. Languidez e melancolia de Outono e sol.

A madeira do chão do andar de cima range saudades da do andar de baixo, que o meu avô trocou por cimento há já tantos anos, e o meu peso de quarta geração treme uma espécie de aristocracia do lugar, validada apenas pelo correr dos anos. Ser mais um dos meus aqui é-me importante, mas triste. Os homens têm raízes mas foram feitos para voar, e a mim cortei-me as asas e plano rente ao que fui.

Espera-me um comboio e jazz embora o apetite seja de cama e sonho, espero-me na estação à espera de mim, e caio folha lenta no torpor do fim de tarde. Sol e Outono, melancolia lânguida, e goteiras melódicas como um bom baterista, é sexta-feira e desço outra vez.

terça-feira, outubro 24, 2006

Furadouro Sul

Sobre a minha praia determinadas gaivotas pousadas como esperando a noite, dormir. Não vou à areia com medo dos seixos. Estou com um problema com os seixos. Quero mais seixos. Quero todos os seixos. E depois chego a casa e não consigo repetir a experiência; estão secos os seixos, não são os mesmos que me cativaram; tenho de ter mais seixos.

Pedalar é bom, imediato. O peso da perna sobre o pedal traduz-se em progressão automática, mecânica, mensurável. Posso travar erguendo o peito ao vento, acelerar curvado sobre o guiador. E equilibrar-me sobre duas rodas para variar dos eternos pés. A minha fiel bicicleta leva-me de A a B guinchado suave, e eu vou com ela e sou ela. A experiência ciclistica como equitação metálica.

O Outono somou o mar à nuvem e um sol fatiado doura os cinzentos. A minha praia já não tem barracas nem turistas, e as determinadas gaivotas sabem-se pioneiras de uma ocupação de Inverno. A minha praia é um bolo de camadas, cada estação um recheio, cada dia um matiz de imponderáveis cores. A minha praia gira orbitas dela e faz-me satélite expectante.

A nome da minha praia é o pesadelo da minha bicicleta, o que até é giro. Furadouro. Ocupo-me a pensar num furo duradouro, persistente, que levasse a minha bicicleta a desistir de me levar, como um incómodo peso, uma tarefa que cresceu ao limite da força e da dor. Vítima da última instância autárquica, a Câmara de Ar. Preciso de um seixo. De um último seixo. Do seixo perfeito. Que me leve a casa e me desiluda. Que me grite na cara um milhão de seixos. Que me cure a dor e a bicicleta.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Aneis

Vir dizer o nada
Que em ninguém toca
Conversa acabada
Sem sair da boca

Trazer em mão vagas
Presentes de nada
Arregalar olhos
A ausentes sagas

Um mais um
Somados soldados
Dão dois e nenhum
Partilha de enfados

Um casal real
Reina separado
Nem bem nem mal
Num trono deitado

Perdemos os feudos
Soltámos os servos
Ainda damos mãos
Para não perder dedos

segunda-feira, outubro 16, 2006

Seixo

Passam gaivotas em bando sobre mim como horas de ponta. O mar às riscas azuis e brancas bate seixos em cordão. Colar de mar. Vento exactamente de Norte a alta e constante velocidade. Brilha um inclemente sol.12 de Outubro na praia. Viva o aquecimento global.

Ouvidos forrados a Bach. Suficiente ainda assim para ouvir a onda. Olhos suficientemente escuros para aceitar o sol. Meti um quilo de seixos na mochila, talvez mais. Um deles é um pedaço de quartzo quase rectangular com 15 cm de comprido. Pesado e belo ainda mais quando o vi. A quimera do seixo é o consolo do pobre. Pepitas de nada sal e pancadas, tirar pedras do mar é quebrar o ciclo. Devia ser proibido, qualquer dia não há areia.

O vento impede-me de ler e acender os constantes cigarros. Tinha ideias de duna mas é longe e tenho preguiça. Deitei-me na corcunda da maré alta e fiz uma poltrona diáfana de areia e toalha. Este vento mata-me.

O sindicato foi amigo e marcou a greve num dia de sonho. Os amanhãs que cantam serão assim? A Revolução passa forçosamente pelo grito do mar. Há um couraçado de nome bizarro nos oceanos da revolta. Há um filme de um realismo russo sobre o tombadilho. Há um terrível Ivan que servia de imagem a uns sete mares dos Sétima Legião. As ondas consequentes afirmam na sua gramática tonal a ponderância da insistência. Teorema provado a seixo com sabores a sal.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Castelos

Uso o desejo como areia corre pela mão e escreve letras e forma palavras. Ocasionalmente o vento apaga-me os desejos, abranda-me a mão. Mas não faz mal. Areal largo, o da minha vontade. Amplo e seco.

Debaixo do céu baixo, carregado e carrancudo, parecem os dias estreitos na horizontal e a chuva afirma e renega em bátegas intermitentes, semafóricas. Podes com calma laranja. Ai quem me dera um verde liberdade, um vermelho negação.

Tropeço na corda simbólica serpenteando-me o ir, e olho nuvens com o espanto imóvel de saber-me aqui. A par chuva e sede. Sedes. Chuvas. Aguaceiro é uma palavra traiçoeira. Tanto húmido tanto encharcado. Se o desejo tivesse estado, era líquido.

Observo a tentativa de verso, espalhado. Se o verso tivesse estado, era gasoso. Sólida só a apetência por som. Entre cego e surdo hesitei outro dia. Deixar as nuvens ou o trovão a vaga ou a ressaca da onda? Escreve-las sonoras num Braille ofuscante?

No tempo dos castelos fazer castelos de areia era privilégio real? E castelos no ar, prerrogativa dos anjos?

terça-feira, outubro 10, 2006

Dilema

Estava a pensar em discos. Não tenho o “The Birth of Cool”; é uma falha na minha discografia; ri-me. Discoteca. Discografia implicava que eu já tivesse gravado. Só garras em corações desprevenidos. Prender o amor é um acto felino, ferino até. Carícias conquistadas de frio e mio. Catalizadoras de convívio. A distância das festas é um pulo de bichano. Arqueavas as sobrancelhas em costas de gato.

Quatro mãos em dois pianos, deste-me este. Oito mãos não forçosamente em harmonia. Festas e prendas, duo dinâmico; o lado mercenário do ser passa por nós e não magoa; a dádiva é irmã da companhia. Mesmo a caridade implica recompensa; generoso em par é altruísmo estéreo.

Comprei uma serigrafia; chamei-lhe tantas vezes litografia que tive de apanhar um seixo no parque verde para me sentir terreno; está aqui à minha frente e as opiniões dividem-se: há quem diga que parece um feijão, há quem diga que é um polegar. É um seixo concreto, acimentado.

Basicamente, estou a ouvir Laginha. Daí a obsessão por revestimentos. E o frio nasce agora a esta hora. Não tenho é gato, mas isso explica-se porque tenho o quintal cheio de pardais. Outro duo dinâmico. Tenho um Batman novo. Escrito e gravado pelo enorme Miller. Que tenho na parede onde vou ter de pôr um Miguel Rocha. Há dilemas bons.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Não Estou à Espera

Não estou à espera
Estou de esperanças
Aguardo mudanças

Corre em mim o sangue brando
Do sono cumprido
Do amanhecer sereno

Vejo no torpor um tropel
Não sei se ainda sonhado
Um som cavo de casco e chifre

Manada de futuros
E eu ainda deitado
Estou de esperanças
Aguardo mudanças