quarta-feira, dezembro 20, 2006

Amarelo

Acho que é dever do homem tornar o seu gesto num acto cénico. Somos paisagem; temos obrigação de cuidar de nós. A intervenção humana no horizonte passa, necessariamente, pela pessoa enquanto actor e vector e público expectante. Quando aceno pela conta, atrasado para a carreira, olhando o mar que corre em carneirinhos furiosos, de Norte para Sul, como um Tejo de cheia sem os privilégios de olhar Lisboa, vejo de perfil no azul o meu perfil no vidro.

A Nortada gélida destas 4 horas atlânticas. O mar nas minhas costas ainda me ruge, um adeus de ameaça, de despeito, de não vás. Eu vou.

Em Lisboa o sol amarelece mais tarde. As sombras menos densas. Mas faz barulho em todo lado, e os meus ouvidos rezam um breve intervalo.

No cinco corro as grades do Botânico, quando chega ao portão vejo os Ginkos de ouro a dourar o Brotero, um sol coado de amarelos cheiinhos de Outono.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Do Amor, da Reprodução e dos Olhos

Apenas isto, o que me resta: liberdade. O vasto horizonte plano da liberdade. Agora os meus olhos vagueiam na possibilidade, o meu nariz sente de novo outro perfume. Lentamente. A visão monocromática e obcecada ( ou seria explodida de cores e fula de amor? ) morreu esmagada de evidências tardias. Foi à loja comprar tabaco e só voltará daqui a vinte anos. Para o funeral de um tio.

Tenho um poema na cabeça e ele não sai. Sairia a quem? A ela, claro. Eu nunca terei herdeiros. Pequenos paulinhos saltitantes a gritar papá. Não.

A decrepitude de mim choca o novo eu. Estou na crise dos quarenta, e veio dois anos mais cedo. Um dia ela leu-me a mão e não me disse nada. Só que tinha uma mão óptima. E setenta e oito anos para viver. Deu-me o fim mas não me deu o meio para lá chegar. Ainda hoje vejo uns olhos a fitar os meus e a não ver nada. Sou o homem transparente. Aparentemente.

O domingo Vareiro acaba frio. E eu sonho aqui o meu último Inverno. Vou para o Sul cantava o Vitorino. Vou-me embora. Começa a vinte e um. Mais um bendito solstício.

A liberdade de me negar. Vinte mulheres olharam para mim e eu olhei-as a todas, mas fiquei sozinho e não sei delas. A liberdade de efectivamente escolher ninguém, de ninguém me escolher. Ser uma peça na vitrina que não sai por ser demasiado cara, ou grande, ou rara. A beleza é gratuita se não a quisermos levar para casa. Dá-me a impressão que vou estar muito tempo sozinho.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Casa

A minha alma é uma estranha casa
Estranhamente sobreposta na encosta
De todas destacada
Contrastada de céu e branca cor
Telha rubra, luminosa e fria
De um sol precoce iluminada

É casa, como tantas
É alma, como tantas estranhas casa
Só, na continuidade monótona das outras
Outra, monótona e continua

Destaco-a:
É a minha casa-alma
Por minha ser
Por ser diferente a minha vida
Por mim me sentir com tantos outros
Por ser só eu
Por me dar o sol desta maneira

Destaco-a:
Porque sim
Sei eu lá que caminhos segue a vista
Quando absorta contempla a própria porta
Sei eu lá o que se esconde no meu sótão
Sei eu lá o que guarda o meu portão

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Da Barba e das Suas Consequências Metódicas

Então como vai? A deixar crescer a barba e a estender o poema. E como vai o poema? Extenso. A barba vejo que corre bem. Tem umas brancas. É, não estamos a ficar mais novos. E o verso, cresce? O branco ou o outro? Os dois. Depende do padrão. Padrão? Perdão; do contexto. Afinal, o poema é texto. E o poema de protesto? Nunca se cala.

Raros são os como nós que sabemos que todo o Universo cabe numa virgula. E que sabemos que usá-la é uma arte em extinção. E o ponto? Qual deles? Não me diga que também há o ponto branco? Não. O simples ponto, o de interrogação, o de exclamação…( e as reticências ). O simples. Esse nunca está só. Une-se sempre em rectas a infinitos pontos numa renda de geometria fácil. Espero que a barba seja mais simples de entender. Um dia vou escrever uma Ode chamada “A Impossível Solidão do Ponto”. Ninguém vai ler. Eu não trabalho para a fama, trabalho para a Glória. E a barba, dá trabalho?

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Perdido

Falhou-me uma vez quem me falhava
Faltou-me pelo tempo de um abraço em falso
Há um buraco em mim do seu tamanho
E o resto de mim parece perdido

Se houvesse uma faca para raspar da pele
A necessidade de outro toque agora
Se houvesse em mim desejo de esquecer
Partir de ti amor Poente

O amor é uma paisagem rara
Que tem solo que tem céu
A mim não me deram o mapa
E o único relevo é ela

É, ando perdido
As pedras não rejeitam
E os tolos vêm nelas sins
Dói-me o oco das mãos

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Da Praia, do Carnaval, do Natal e do Túnel

Tive uma mulher que tinha medo de comboios. Também tinha medo de mim. Há coisas estranhas na vida de um homem. A onda curva sobe a praia no seu som redondo. Um homem cria couraças ao longo da vida. O homem é um tatu, de longas garras e face afilada. Um tronco branco marca a meia praia. Fugir da escolha é escolher. Assim, em cada duas opções há sempre uma terceira. Uma espécie de espírito santo do caminho, só que este convida à passividade o outro à acção, este à indiferença o outro à caridade. A areia muda com o vento e canta tranquila.

Chove sobre mim como tule, lembro Carnavais com véu e álcool, e beijos no pescoço sob penas de índia. Amarro-me sólido à ideia que não mudei porque não foi necessário. Agora na mesma, só perdi tempo. E esse, para mim não vale nada. O imaterial tempo não é um crédito, é uma imersão.

Andei ontem pelas lojas peneirando prendas, os milhares de sorriso uma vez ao ano. Consumir e passear bailando entre as montras e os pinheiros de natal. Dançar perdido um samba-canção. Ouvir Elis a cantar a louvação. Nosso Senhor gosta desta música. Louvando o que bem merece deixa o que é ruim de lado.

O tempo de um adeus é o tempo que se leva a prepará-lo. A vida deu-me calo em despedidas. Ainda dói, mas já não espanta. E a vida é a surpresa. Dizer adeus é um comboio suburbano a entrar em S. Bento. O túnel quase medo, a estação de solidez férrea e já chegamos. Adeus a este, a mais este, adeus. Não sei quem falava de partidas apitadas ( por acaso até sei ); a minha vida é só uma chegada acre.