sexta-feira, julho 22, 2005

Natureza

Num horizonte coberto de nuvens
Acasteladas, sobrepostas, fantásticas construções
A arquitecta natureza trabalha o efémero ar
Com a dedicação obcecada do buscador de obras primas
Para deleite das democráticas massas, esta arte pública
Sem patrono nem mecenas, sem gosto nem destino
A artista natureza não é fugaz pintadora de telas a esquecer
E apenas diletante que rabisca e rasga, que cinzela e parte
À procura de uma perfeição que sabe inexistente
À procura de um tempo imóvel que lhe pare o ímpeto
Sabendo que nada lhe parará o ímpeto
Sabendo que sempre moldará um novo ar no mesmo espaço

Dedicada é o outro nome dela
Não cessa o esforço, não dorme, não descança
Cria constante a inconstante obra, a inacabada maravilha
Cria-se recriando-se, divertindo-se com uma imensa panóplia
De cores e massas, de volumes, de sombras e vazios
Gaugain que não parou sequer nos mares do sul
Van Gogh que nunca precisou de orelhas para buscar nos pássaros a canção inspiradora
Cega como Borges nunca leu bibliotecas
Mas elas estão cheias dela, plenas da sua graça como virgens grávidas
Fecundadas pelo sopro da divina mãe terra sem pecado, que não sabe sequer o que é pecado

Nuvens do céu são elas céu mas nunca escondem paraísos
Árvores na terra são elas terra e nunca dão frutos proibidos
Pássaros e cães e formigas e homens e cobras e tudo o que se mexe
São obra desta criatura criadora, desta mestra sem colmeia
Imensa e circular natureza mãe de todas as mães e dela própria
Origem do todo e toda ela destino, fim perpétuo que nunca acabará
Inicío mítico de todos os mitos, criação sem passado
Com todo o futuro atrás e à frente, contendo tudo e por nada contida

Natureza que é muito mais transcendente que todas as transcendências
Transcendente que é muito mais natural que todas as naturezas
Nunca única porque de tão vasta se encontra sempre na própria companhia
Grande como todas as palavras que alguma vez foram ditas e esquecidas
Enorme como todas as palavras que ainda não nasceram
Inúmera como todas as palavras que conheço
Infinita como todas estas palavras todas juntas vezes mil e ainda mais

No entanto é nas nuvens que a vejo e admiro
É no fátuo e efémero que lhe invejo o brilho
Na leveza aparente do que faz que eu busco a emoção para os meus versos
Eles são obra dela, como eu sou, como esta folha que já foi árvore
Como estas palavras que pensei e agora escrevo

Sou então seu cantor, ela me fez, imperfeito, fugaz, incompleto e inábil
Mas não me importo
Tudo o que vejo, o que cheiro, tudo o que toco, ouço e que provo
São obra sua, dos cinco sentidos retiro todas as direcções e sensações
E sendo cantor, imperfeito, fugaz, incompleto e inábil
Sou assim porque assim ela me quis, sou assim porque sou dela