sexta-feira, julho 22, 2005

Da semelhança notável entre culinária e arqueologia, ou da paternidade de meus versos ou ainda da loucura como liberdade provisória

Quando eu era pequenino queria ser cozinheiro depois cresci e queria ser arqueólogo, agora faço as duas profissões nos versos que escrevo. Pego no ingrediente principal eu e preparo-o com minúcias ou o sirvo inteiro assado no forno só com pimenta e sal, ou corto-o em finos filetes a que acrescento molhos raros, ou pico-me e sirvo-me cru, ou...Pego em mim sítio e vagarosamente escavo camada após camada medindo, tirando fotografias, colocando cada pedacinho significativo em pequenos sacos, às vezes descobrindo muito, às vezes encontrando nada.
Sou assim um misto de escavador e preparador com o fim específico de me apresentar ao mundo por um lado revelado em sabores e cores por outro livre de segredos e do pó dos anos. Os meus versos serão então culinária antiga servida ao futuro, comida nova descoberta por acaso e de trabalho imaterial, pratos finos ou tradicionais repastos.
Não são é eu, não são a minha circunstância, são meras receitas de uma comida mais ou menos comestível, que sabemos que surgiu de uma cozinha, que sabemos extraída à terra; eu estive lá na origem deles isso é certo, mas não são eles fotografias, nem sequer linótipos, nem sequer xilogravuras, nem sequer histórias distorcidas pela tradição oral dos séculos.
São muito menos que isso: São vestígios de uma existência; podemos saboreá-los, podemos vê-los, mas não podemos, nunca, entende-los.
Houve uma altura que eu escrevia para ler-me, agora deixei-me disso, só escrevo para passar o tempo, para afiar a língua para sabores novos, para carnes mais rijas. Agora só me interessa o som dos meus versos, o seu sabor; se me interessasse o sentido ia para Filosofia, nunca para Psicologia que doido já me sei, e ainda bem.
Quando ainda não era doido tinha problemas, mas agora a consciência clínica da minha loucura libertou-me de uma forma nova, criou-me uma anarquia sensual em que tudo o que me rodeia pode ser aceite; aceite, não experimentado, que isso já não é loucura, é inconsciência, e a minha loucura, sempre presente por definição, oscila entre pazes e guerras.
Assim sigo, louco sazonal, entre comprimidos e esperanças, arqueólogo como quis, cozinheiro como quis, fabricando versos de som forte e sentido inútil, desenterrando passado eu ou cozinhando presente mim.
Amo meus versos como outros amam filhos, é certo, mas de pai tenho a forma severa que apenas reconhece defeitos, nunca qualidades, e assim trabalho-os como os educando; o que quero deles? que cresçam, que arranjem um emprego, que se casem e que me dêem netos, apenas isso; o que podem eles esperar de mim? São versos, nascem feitos e completos, de mim já não esperam nada.
Sou seu pai louco que ocasionalmente visitam entre outros sons que ouço, entre outras vozes que escuto; Sou seu pai louco que os abandona mal nascem depois de os deixar cair dos dedos sobre as teclas olhando-os depois como se saídos de garganta alheia.
Não sabem, não podem saber, que os visito muitas vezes, que lhes altero virgulas como quem penteia cabelos rebeldes, que lhes tiro palavras como quem aperta botões, que lhes troco ordens como quem lhes veste mais uma camisola que hoje está frio.
Sou o pai louco amantíssimo mas mudo que eles falam por mim e basta.

6 Comments:

Blogger maria said...

Que eles falem por ti... cozinhados como quem encanta e magicados como quem se prende no ingrediente mais sentido.
...
a psicologia é para outras formas de loucura (ainda bem) e faz crescer asas a algumas loucas, que eu sei.

Espero um deleite desses sabores, perder-me por aí, n'algum labirinto de descoberta, pedra a pedra, segredo a nú, túnel, mistério, encantamento

sexta-feira, julho 22, 2005  
Blogger paulo said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

sexta-feira, julho 22, 2005  
Blogger paulo said...

Vai esperando...

sexta-feira, julho 22, 2005  
Blogger Cadelinha Lésse said...

Gostava de ter um pai assim. Ou um filho, ou um neto, ou, simplesmente, um poema em que me revisse ou pudesse navegar. Mas não. Da ponta dos meus dedos não consigo parir nada, apenas movimentos em teclas comandados, não pelo sabor do vento, que as velas estão recolhidas. Logo não vai longe o meu barco...

sexta-feira, julho 22, 2005  
Blogger paulo said...

Não é essa a impressão que tenho das idas à tua casota. Mas que importa: ver, ouvir, ler, são tão importantes como exibir, falar, escrever. Olha, vai parindo, e se não encontrares nada a que te compares, ou se te achares pequena e vã, inventa a arte nova e diz: é minha.

sexta-feira, julho 22, 2005  
Blogger Cadelinha Lésse said...

Vou pensar nisso. Cãoparar-me é que não!

:)

sexta-feira, julho 22, 2005  

Enviar um comentário

<< Home