terça-feira, outubro 31, 2006

Me

Atravessado de brisas o azul do céu nega a estação. A minha trepadeira perde lentas folhas num ritmo de Sul que nega a longitude, e eu, quase lânguido, espreguiço-me no sol pálido. Anteontem, a clarabóia da minha cozinha encheu-me um balde negro agoirando o telhado, e as vigas de cinquenta anos cantavam no vento baladas de adeus. O meu tecto é uma antiguidade, das não preciosas, e a minha vontade é deixa-lo ruir numa cascata de pó e telha.

A casa velha de mais de século é um forte de xisto com paredes de metro. A fachada de azulejo geometricamente castanho é centrada pela varanda de ferro verde, e as portadas duplas são coroadas de vidros coloridos, tendo no centro dois corações azuis. Bela e fria. A true hart is a blue one. E aqui são dois. A conotação do azul não é retroactiva, mas o meu pobre coração anda triste. Languidez e melancolia de Outono e sol.

A madeira do chão do andar de cima range saudades da do andar de baixo, que o meu avô trocou por cimento há já tantos anos, e o meu peso de quarta geração treme uma espécie de aristocracia do lugar, validada apenas pelo correr dos anos. Ser mais um dos meus aqui é-me importante, mas triste. Os homens têm raízes mas foram feitos para voar, e a mim cortei-me as asas e plano rente ao que fui.

Espera-me um comboio e jazz embora o apetite seja de cama e sonho, espero-me na estação à espera de mim, e caio folha lenta no torpor do fim de tarde. Sol e Outono, melancolia lânguida, e goteiras melódicas como um bom baterista, é sexta-feira e desço outra vez.

2 Comments:

Blogger mfc said...

São casas que contam histórias que ouvimos, voltamos a ouvir... e a ouvir, porque ela é também a história da nossa vida!

terça-feira, outubro 31, 2006  
Blogger isabel mendes ferreira said...

" espero-me na estação à espera de mim, e caio folha lenta no torpor do fim de tarde. Sol e Outono...."


intensa a luz das tuas palavras.



xi.

quinta-feira, novembro 02, 2006  

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