quinta-feira, novembro 02, 2006

Hallowen

É dia de todos os santos e como sempre ruma toda a gente ao cemitério antecipando o dia de todos os mortos. Esta ponte entre a cessação da vida e a obtenção da santidade e o facto de não haver santos vivos, faz deste dia uma saudável confusão entre vivos e mortos, santos mortos, vivos aspirantes e mortos sagrados, vestidos do manto da serenidade e da sabedoria.

Um mar de flores cobre as campas entre milhares de pessoas negras. Há quatro altifalantes nos cantos, o abade debita pais-nossos que todos repetimos num quase mantra. A multidão não é normal, porque não oscila nem faz barulho. A quadricula de tumbas emuldura famílias e os seu mortos, numa imobilidade forçada pelo respeito e a falta de espaço. Cumprimentam-se os vizinhos de campa com acenos secos, e verifica-se se o arranjo deles é maior que o nosso. Há invejas que florescem nos ramos de rosas.

Benzo-me e saio da nuvem de cera e dor. Os fiéis defuntos degeneram numa fidelidade aos defuntos. Sempre assim foi, aliás. Respeitamos o verbo da morte, sabendo-o um verbo mudo. Por consciência ou saudade seguimos ainda os nossos mortos. Normalmente um cemitério é uma coisa fria e vazia, onde raras pessoas trocam raras palavras, para quebrar o tédio do mármore branco e das cruzes alinhadas. Aqui há o peso do que se calou e agora já não serve.

A santidade é um processo, arquivado numa cave vaticana. Os católicos gostam de santos e mártires porque acham que tendo eles vivido por Cristo ou morrido por ele, indirectamente fizeram-no por todos. São acções ( boas ) do reino dos céus. Fui católico como toda a gente. Agora a Igreja parece-me que vende Futuros, e que se assusta com as oscilações do barril de crude. Não gosto do senhor que é Papa, e dá-me a impressão que este ano houve pouco dinheiro para as palmas e as velas são também menos.

Todos os Santos e Fiéis Defuntos num começo de Novembro primaveril, e eu somo as memórias dos meus e acredito no céu porque é o único sítio onde eles podem estar. Saio pela porta lateral. A principal tem escrito “parvus e magnuns ibo sum” ou algo parecido. É verdade, mas eu não gosto de passar por baixo.

3 Comments:

Blogger Sophie said...

Céu e terra contrapõem-se refeitos na paisagem. Da incrível distância que os separa, o céu fita permanentemente a terra que, indiferente, não lhe devolve o olhar, ainda que chova. Parece que estão sempre com os sentimentos em desacordo. Talvez seja porque a verdadeira compreensão esteja no horizonte - único lugar onde céu e terra estão eternamente juntos e em perfeita sintonia -, mas o horizonte é apenas uma linha imaginária...
Um beijinho para ti.

quinta-feira, novembro 02, 2006  
Blogger isabel mendes ferreira said...

" Aqui há o peso do que se calou e agora já não serve."

_________________

e o que resta somos nós. fiéis depositários de uma saudade que é só nossa.

________________

beijo-te.

quinta-feira, novembro 02, 2006  
Blogger mfc said...

Nunca tive esse hábito.
Priveligio os vivos. Não está muito bem... eu sei!

quinta-feira, novembro 02, 2006  

Enviar um comentário

<< Home