quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Cisne

Não foi por um dia ter ouvido Carl Sagan dizer que somos todos filhos das estrelas que eu passei a acreditar que a minha mãe tinha feito filmes em Hollywood; Não foi por me terem dito que Pedro era a pedra em que Jesus edificaria a sua Igreja que eu passei a acreditar que eram de homens os alicerces das coisas. Não foi por ter duvidado de mim que duvidei de tudo, não foi por ter tido a certeza de mim que jurei as certezas alheias. Olho e vejo. Cheiro e sinto. Toco. Provo. Maquina sentimental, o corpo que aqui sou tecla e ecrã, ouvindo sonatas para cordas de Rossini, esta em sol maior, quando faz sol e frio lá fora, é. Tenho para mim que a vida é uma expressão de busca e caminho; que a felicidade umas vezes é meta outras origem. Sei que nasci de um orgasmo, sei que o prazer e a dor se comungaram quando acordei no mundo. Sei que todos fazemos parte de um todo; e que esse todo paradoxal é maior, muito maior que todas as suas partes. E se esta matemática absurda das contas não certas se resolve entre fé e desejo, entre partida e crescimento, sei que a culpa não é minha. Filho das gerações, não carrego heranças que não sejam genéticas. Vitima de cultura, carrasco de gramática, escrevo porque tenho tempo. Não, o meu coração pedreiro sabe que não habitará esta mole de palavras. E o empreiteiro eu não tirará lucro destas pedras. Tenho é pena dos cisnes, mesmo daqueles que nunca ousaram ser patinhos feios, e recusaram espelhos por acharem que não mereciam as Alices que por lá se escondem. Sim, eu às vezes olho a vida, essa mestra de ironia e sinto-me deslumbrado. Um cisne na Áustria esquartejado no telejornal; um emigrante, esfaimado e doente, procurando um abrigo mais a Norte, morrendo às portas da antiga Europa carregando pestes modernas. E põe-me assim a ironia natural das belas asas para sempre cerradas. E penso no mote da modernidade: A única constante é a mudança; e busco mote para mim: a beleza cambiante transcende a lágrima. E descubro-me romântico. Tenho aqui na parede uma bela gravura de Camilo; outra de Bordallo; outra de Pessoa desenhado por Almada; por cima um D. Quixote de Picasso; falta-me um cisne, mas, afinal, tenho a certeza que não sou o cisne, e isso basta-me.

3 Comments:

Blogger Mãe said...

Primeiro ri. Depois sorri.
Por fim... senti.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006  
Blogger isabel mendes ferreira said...

...e eu?

primeiro li
depois absorvi

depois entristeci....

prefiro-te Quixote de asas de cisne num coração de gaivota com palavras de cal no coração de uma modernidade coerente....e culta.


bom dia Paulo.


afectuosamente.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006  
Blogger paulo said...

Flor:
O que tu lês de "maior" em mim é apenas fruto da educação que tive, do privilégio de desde que sei ler ter tido acesso aos grandes da nossa literatura e das outras. Não é extraterrestre, é intralivro. Nascido em Coimbra, numa casa com livros e pais que os amavam, tive desde muito pequeno uma educação melhorada. Se me quiseres chamar coisas, chama-me atleta da palavra, daqueles em que descobrem um talento quando pequenos e o alimentam; acresce que a qualidade de ensino a que tive acesso sempre foi excepcional; em mim resultou nestas linhas que lanço para esta rede que nos prende a todos, com os seus fascínios diários. Vejo o mundo à minha maneira, é certo; talvez essa maneira seja mais precisa, mais certeira, não sei; mas sei que as minhas ferramentas são talvez um pouco melhores que as da maioria; é aí que pode residir a diferença que notas. Agora olhares para cima, não aceito. A Democrática Sociedade Blogueira não acredita em Senhores, e eu acredito nela. Gosto imenso do teu blog, embora tenha sido um encontro recente e eu não tenha comentado muito; espero que voltes. Um beijo deste muito humano Paulo ( que, sem ironia, significa pequeno agricultor ).

quinta-feira, fevereiro 16, 2006  

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