Coube-me
Assobio o fio da música numa nota distinta do tom. Procuro a projecção do sentir no tremer do lábio modular o som numa ária de ar. Dá-me a impressão que seria músico se tivesse tido alternativa. Mas não, coube-me ouvir. Alinhavar duas notas numa sinfonia de ausência, ser o seco batimento de um pavilhão alçado ao vento, ser o pingo melódico da chuva agreste, a brisa a cantar entre os choupos. Mas não, coube-me ouvir.
Da mão que te dei não sobra nada, nem sobre nada. E se tive dias em que pensei em mais, o tempo tratou de me curar as somas. E penso que se me recordasse da batalha ao menos tinha em mim o sabor da derrota. Mas não, coube-me esquecer. Lembrava-me de nós quando acordava de manhã e podia ficar deitado a ouvir a chuva. Depois partiu a chuva, ainda resto eu e a cama vazia. De ti nada. Lembro-me apenas nitidamente que não exististes. Sim, coube-me esquecer.
Colecciono discos como quem colecciona borboletas. Um alfinete no dorso, uma etiqueta em baixo. Isto és tu quando voavas assim. Por vezes passo tardes inteiras imerso em música, sem vir a tona a respirar, só no meu aquário de melodia e ritmo. E se morresse com a nota na garganta, aí talvez me coubesse esquecer de ouvir. Mas não, coube-me nadar.
Por entre plátanos e poças de água saí de ti e não conto voltar. Se voltar, perco-me porque não sei o caminho. Nunca soube o caminho. E se te prometi algo, vou fazer que não cumpri. Morre um pedaço de mim todos os dias, mas não mais do que morria antes. Sim, coube-me viver. E se me lembrasse de ti, pedia-me desculpa de ter-te conhecido. Sim, coube-me eu, e não me sobra mais nada para dar.
3 Comments:
Paulo....
fico sem nenhuma mas nenhuma mesmo:
palavra.
leio leio leio e respiro. muito ao de leve....
obrigada.
Não podemos ser todos músicos!
Que seria deles se não tivessem ouvintes?!
Vivamos, pois, a nossa vida!
A borboleta é um ser artístico
Cuja beleza
Está além do laminado das suas asas
Que súbito surpreendem em adejos
Entre áureos vitrais traçados pelo sol
Em paralelas enfiadas
Pelos vãos das quaresmeiras ametistas;
A graça da borboleta
Não está somente na leveza
Do seu bailado
Entre os verdes de romãs;
A borboleta é um ser madrigal
Cuja essência
Vai além do que as pupilas podem admirar;
A borboleta
É a alma dos anjos.
Um beijo meu.
Enviar um comentário
<< Home