quarta-feira, outubro 28, 2009

Hora Legal II

Na opacidade do céu vejo ainda a derradeira andorinha. Voa só e tímida, como quem perdeu comboio, e fica no cais, sem nada saber além de que perdeu. Irá a Sul como eu, quando lhe sobrar vontade e lhe restar frio. Uma pomba arrulha no telhado, também confusa. Era já de arrepiar este dia, mas não, ficam uns belos vinte e cinco graus às doze, que agora são onze, que mudou a hora, e estamos todos um pouco tontos e solares. Eu a andorinha e a pomba.

Aqui nestas águas furtadas, de trapeira redonda e janela basculante, passo os meus dias também no céu, três andares acima das ruas. Daí o sentir-me algo pássaro, de voo que apesar de baixo é voo, de pio que apesar de mudo diz. Eu a andorinha e a pomba, que entretanto se calou, somos, neste telhado, uma trindade moderna: a andorinha espírito santo inspirador; a pomba voz de deus; eu olhando da trapeira filho aqui posto para testemunhar presenças.

Assim, e pela santidade do dia, escrevo a linha testamento, nem velho, nem novo, apenas hoje. E fico enclausurado na trapeira a ver o mundo redondo como afinal ele é, esperando serenamente o frio que virá inexoravelmente. Vai restar a memória da asa negra, a voz da pomba cinza e as letras, incolores, essas que não desistem de se escreverem umas às outras.

sexta-feira, outubro 23, 2009

Sal

Desapareceu a nuvem após a nuvem
E a chuva lava-me interior e exterior
Uma pele curtida sobre a pele curtida
Um forro macio sob a carne dócil

De altos e baixos me componho
Cordilheira maciça em pico e vale
Acabou agora o andar tristonho
E a vida parece ter mais sal

segunda-feira, outubro 12, 2009

Dueto

Ofuscado pela luz tardia
Ofendido pelo calor intruso
Trepo em mim como se fosse hera
E árvore também num dueto claro

Sabe-me a boca a pó
E o desejo a nada
Sinto-me só
Trepadeira em sacada