segunda-feira, abril 23, 2007

Invisível

Capaz de pensar e agir
Capaz de agir sem pensar
Capaz de amar e sofrer
Incapaz de te ver

Sofro do espírito míope
Que te desfoca inteira
E se penso penso ver
Não há visão verdadeira

A barreira da língua
A muralha da China
O não saber ouvir
O apenas pressentir

Catarata branca que me turvas
De vapor d'água e trovão
Olhos meus má visão
Não, não consigo ver além das curvas
Não, não com os mil sentidos que perturbas

Quero o toque imediato
Ler-te livro ou sinfonia
Mas é meu o defeito inato
De só aceitar simetria

Assim fico aqui
Vestido a esperança despido de ti
A idealizar cegueiras
Preenchidas e brancas
Vazias e não estás

Estás além da muralha
Para lá das águas
E não há batalha
Por defeito das armas

quinta-feira, abril 19, 2007

Entretanto

Caída a ruína que já era ruína
Num murmurar de pedras que ninguém ouviu
No terreiro vago do peito
Fica oco o peito que já era oco

Sopra um vendo rasteiro de pó e folhas
Em pequenos turbilhões de nada
O cheiro a seiva e pólen
A paz no coração que nunca foi selvagem

Nada tinha e nada tenho
Apenas mais diferença e espanto
De como as coisas são eternamente coisas
De como eu sou apenas meu

E no entanto tudo
E no entretanto nada

segunda-feira, abril 16, 2007

Pendulo

A chuva acabou, também o frio. Um sol pálido ainda, um céu azul esbranquiçado, que me faz ver o mar já ao fundo da Avenida. Ver em mim, a recta tem mais de três quilómetros, mas eu sei que está lá, e que as cinco e meia vou estar em frente dele, cheirá-lo, ouvi-lo, sentir a oscilação que é a minha, o ritmo monótono da maré e o seu verde quase esmeralda destes dias. Uma nostalgia toma conta de mim, como um abraço maternal, como uma carícia morna. A recordação de outros dias e de outros mares faz-me perceber, numa lentidão que é em mim quase ritual, que o devir é, e que nada que eu possa fazer vai determinar a forma do meu futuro. E isso liberta-me para usufruir o presente. Não quero nada da vida, só vivê-la. E isso, o céu esbranquiçado, a promessa da manhã, a certeza do som do mar, forra-me, com a lentidão do costume, o coração de uma forma rara de felicidade, uma felicidade triste, mas segura, de mim, do mundo, e dos outros. Sereno, agora sereno, vou esperar as cinco e meia, o mar, e as ondas esmeralda. Esperar na lentidão do coração cheio, pleno, mas calmo como um relógio de pendulo, como um olhar de velho, como uma tradição esquecida.

sexta-feira, abril 13, 2007

Inteiro

Na pausa parado por excesso de carga
Eléctrica
E o trovão não vem
E o raio não rasga
O nocturno céu

A nuvem baixa e o sobrolho fechado
A voz que grita e a garganta muda
Na pausa parado por excesso de carga
E a palavra cessa por demais amarga

Da ponte improvável dos desejos
Restam as duas margens aflitivamente concretas
Ontem vi o arco iris
Na óptica bela de um dia normal

Talvez a tempestade tenha acabado
Sem o alarido costumeiro
Deixando-me
Mais uma vez
Inteiro

quarta-feira, abril 04, 2007

Vai dar ao Mar

Numa ânsia de pulo e salto
De transposição
Tenho no corpo e no espírito
A convulsão

A teimosia de separar o todo
Começa por mim
Porque divido a ideia do contorno
Se é igual o fim?

Catacumba bipolar a minha alma
Toda a vida condenada a ser seu par
Um dia a profunda calma
No outro a raiva solar

Num dia o fecho o trinco a porta
Noutro o grito que nada comporta
Num dia a bacia da represa
Noutro vem a cheia e a correnteza

Vai dar ao mar vai dar ao mar
Sei que este meu rio lá vai dar
Se não chegar se não chegar
Então irá onde deve parar
Então irá onde deve parar

segunda-feira, abril 02, 2007

- 20

Na febre da dança na febre de sábado, tudo à minha volta tem menos vinte anos e eu sou o Jurássico que visita o parque. O parque é ali ao lado, a Sereia, aqui numas noites longas que ao fechar às seis não se desmentem, estou eu o resto de uma festa e a juventude saltante e saltitante. Bebo vodka, rum e cola, e estou aceso como um círio pascal. Mas à minha volta tem tudo menos vinte anos.

No fim, sucede-se ao rugir das colunas o cantar das árvores e dos pássaros num after-hours, e uns olhos verdes, só com menos cinco anos, vão ladeira abaixo e eu vou ladeira acima, num desencontro habitual. Ela ama alguém, eu digo-lhe que nunca mais a quero ver, eu não sei se ela percebeu que eu quero que ela seja feliz, mas deve ter percebido. Ou então, como habitualmente, fui eu que não percebi nada. Noites longas, vodka rum e cola, e algo que se me cola e eu não sei bem o quê. Tenho um post-it na alma.

A manhã abre, e subo, desço, sento no muro logo acima da maternidade e fumo um cigarro a olhar o vale. O meu vale. Senhor da montanha, evola-se o fumo numas sete horas que irão bater, quase já, na torre de S. José. Penso, no emaranhado pensamento desta madrugada, que menos vinte anos é muito tempo, menos cinco anos é muito tempo, e que perco muito tempo a pensar no tempo.