quinta-feira, junho 28, 2007

Desertos

Por vezes por excesso
Outras por defeito
Sigo numa linha
Não exactamente recta

Não exactamente linha
Não correctamente torta

Por vezes por feitio
Ou calma desusada
Corro atrás da cauda
Perco trama e fio

Não exactamente fio
Não intricada trama

Só desejo de cama e sono
De horizontes brancos
Velas barcos areia
Desertos lisos que não há

Não incrivelmente planos
Não assim tão vazios

quinta-feira, junho 21, 2007

Placenta

Estabelecida como boa a imensidão do eu
Sabendo minha a dimensão do mundo
Filho da terra neto da estrela criatura do nada
Fecho as portas e apago-me sol

Viver é ser extensão e a extensão é toda
A camaradagem com toda a coisa viva
E sabendo a vida rodeada a tudo
A extensão de mim é a conclusão do todo

Sou na continuidade do tempo
Estou na permanência do espaço
Vou que me levam ventos
Não chegarei a lado nenhum

Derrama o céu o azul sobre as águas
E a muralha de nuvens lambe-me a pele fria
A canção do mar sabe a placenta
E a fome de mais quase se contenta

segunda-feira, junho 18, 2007

le Cahier Bleu

A noite cai sem tropeçar mais uma vez no prato Mozart com teclas e Pires. Maria João. O piano corre entrevisto entre dedos que não vejo. Aqui em casa havia um piano que só tocava do Natal aos Reis com o ensaio da Trupe da ADO. Uma festa. O piano nem era mau. A pianista era, e ainda é, uma Maestrina.

Na parede onde ele estava há agora um sofá de couro quase transparente de uso por cima uma serigrafia do Juillard ( le Cahier Bleu, Casterman, 2003 ) com a Louise muito bem sentada no seu sofá ao fundo o estirador 378/3000 não é nenhuma preciosidade, e à esquerda de quem entra um Duke e a direita um Trane de um amigo meu. Nandinho. Bom pintor. Um bocadinho chato, mas bom pintor.

O dia desaparece sem deixar saudades além das que já havia.

sexta-feira, junho 15, 2007

Já Não

Uma porta que abre para fora
O sol espera
Uma porta aberta de dentro
Da nuvem

A palavra é a vogal
Com que me falo
Em retalhos sem dor
Desconexos mas ambos

Plurais
Excedem-se à solidão
Ampliam-se a ela
E são de acordo

O sol espera
Eu já não

quinta-feira, junho 14, 2007

Falha

A nuvem deixa que o vento a pinte por toda a gama cinza
Borrões de azul
Vento a Sul e ao frio e eu
Sei que como sempre este céu é meu

Tenho em mim a vontade absurda
De tão absurda nem eu sei qual é
Um espírito de mudança que me morou antes
Não me incomoda mais
Por isso é outro

Assombro-me a mim mesmo no derrapar dos dias
No nascer fácil das manhãs pelas minhas janelas
E desisto que desistir é admitir
Novo começo, nova curva, ainda mais céu

A esperança colorida do melhor
É da cor da nossa cor mais querida
Falha a mão, falhe a ideia
Não falhe a Fé

quarta-feira, junho 13, 2007

Deixa Chover

A ruína que se avezinha. A avezita. A visita da vizinha. A aliteração como ferramenta melódica. O som mais uma vez como único sentido. O Verbo, principalmente no principio. Na abrupta golfada de ar, do primeiro ar, que sorvemos ao mundo. O choro. A construção quotidiana do ir. Porque temos de ir. Devir. A arquitectura imbricada do vocábulo. O cabelo. O fio de seda. O bicho. O cabelo cai em Outonos meus. Em silêncio, na câmara lenta de reclame contra a caspa. Sinto-me linike.

Alguém escreveu por aqui que eu andava a procura do que já tinha encontrado. Sim, pensei, mas quero encontrar mais vezes. Quantas possa.

Mau tempo para o Stº. António. Nascido em Stº. António dos Olivais, morando à sombra de uma Capela de Stº. António ( de Lisboa ), sendo ainda afilhado-neto ( eu explico ) do mesmo Santo ( meu avô António era afilhado, via sacristia, do Santo em Pessoa ) com papel e tudo, sinto-o como uma ofensa pessoal de S. Pedro. Há guerra para os lados do Céu. Um era Doutor, outro Pescador reclassificado em Pilarete do Catolicismo. A Sabedoria contra a Engenharia. Que dirá o Supremo Arquitecto? Deixa chover, no correr dos eons acertam-se as contas.

segunda-feira, junho 11, 2007

Lorvão

E no deslizar do dia sinto a pela a arder de uma fricção mole, um queimado deste sol que se esconde entre nuvens altas, e sorri, com a breveza de um adeus e se esconde, sempre queimando o braço, sempre perlando a testa. A memória ondula-me como chapa, em vales e picos, e assim não é bem como chapa, é mesmo como vales e picos. O Hospital da minha doença vai fechar, vou continuar um doido à solta, é bom. Era das Freiras, era do Estado, agora já não é, e fica o meu Peniche de onde nunca fugi senão nos sonhos exarcebados, quanto as drogas deixavam sonhar, que era pouco. Sinto-me mais só sem o meu asilo.

Nas noites brancas que continuo, vejo o que me deixa a vista cansada. E vejo muito, e vejo nada, na neblina fina do álcool e do fumo, na embriaguez dos perfumes, nos declives dos decotes, nos canyons dos jeans, Na perna grossa que me afina, no braço fino que não me enrosca. Não me sinto aqui só. Este asilo não acaba, pelo menos não acredito. Enquanto houver doidos disto, pelo menos. Os doidos daquilo, esses já não tem Peniches. Os doidos disto tem todas as noites de todos os sítios.

Amanhece quando tiro a cabeça do buraco, e atravesso a cambaleante ponte sobre o rio de aço. Lá vou outra vez para a minha caminha de solteiro, o meu edredão cor de vinho que só se enrosca a mim. E continuo a não me sentir só, quero é dormir e se puder sonhar com tudo e com nada, desde que não me lembre depois, tenho medo que com os sonhos concretos venham as discretas drogas. Já não no velho convento, definitivamente. Ainda não sei onde me vão matar os sonhos daqui em diante. Agora, no rio de aço, isso não me importa lá muito. A única distância que vale agora é a da minha caminha de solteiro. Do meu edredão virginal, na sua cor bêbada dos sonhos esquecidos.

sexta-feira, junho 08, 2007

Contador

Impõe-se o poema
Pela hora e pelo dia
Impõe-se lavrar
A lápide urgente

Não que haja que fazer
Nem o sol convide
Nem me mexa o vento
Não, não se passa nada

E é isso que agora
Me urge gravar
Numa lápida lépida
O oco do dia

O trânsito corre como habitualmente
O vento sopra habitual pela varanda
Eu olho o ecrã e espero as cinco
Eu olho para mim ao ecrã

O verso como contador de segundos
Como acumulador de minutos
E o poema sai
para compor a hora
Para acabar o dia

segunda-feira, junho 04, 2007

Trinta e Nove

Neste primeiro dia do meu último ano de trintão, imponho-me a mim mesmo celebrar. Viva eu, que estou e permaneço; Viva o vinho, que me alegra e não me pede nada; viva o sol, que me aquece e pinta a pele, e só pede que o anseie. E o mar, que me dá cor, cheiro, sabor e música. E a nuvem plástica, e o vento doce, e a flor aroma e forma, e o pássaro voo e canção. Vivam os cães que me ladram porque sabem que eu existo, vivam as mulheres que me olham porque sou bonito, e as outras pelos motivos delas. Vivam os amigos que confortam e os inimigos que motivam; vivam as crianças porque são o futuro, vivam os velhos porque resistiram. Viva eu, que me aturo todos os dias e ainda assim consigo olhar para mim e ver defeitos. Viva o dia do meu aniversário porque é o dia em que a minha mãe teve o sexto filho. E viva a minha mãe morta, porque ainda possui a capacidade de ser lembrada com carinho e admiração. E viva o simples facto de viver e de estar vivo, e achar que dar vivas é bom. Viva! Foi bom ter durado até aqui, e que venham mais, que gostei destes!