terça-feira, maio 30, 2006

Reduzido

Trago a trago
Traz-me a vida
Menos largo
Menos medida

Vista mais curta
Mãos mais laças
Sem prazer a luta
Ideias baças

Ter nos braços
Esperanças gráficas
Encher berços
De matrizes únicas

Jaz de mim partido
Um molde sujo
Algo perdido
De que não fujo

Fico somente
Estou cá
Pardo e dormente
E não há lá

Resta mudar
A rima ao verso
Abusar poetar
Peculato de uso

Da língua elástica
Sobra-me o termo
O fim do léxico
É meta fantástica

Reduzido diário
Que penso e escrevo
Este verso amaro
Sem força nem novo

sexta-feira, maio 26, 2006

Docktor

Remeto a responsabilidade para outro que não eu, finto, iludo e iludo-me; sou soberano na soberba de sonegar a soma certa da culpa. Freud. Andei a ler umas coisas com os cento e cinquenta anos do Herr. Não me especializei, ilustrei-me; sobretudo no espesso com as ilustrações magnificas do Saraiva. O Herr era Checo quando o pensava Austríaco; o Herr era um prodígio que oscilava entre a vocação mais lucrativa; o Herr roubava descaradamente ideias, e indignava-se com escarcéu com o idiota original; o Herr era giro e tinha estilo. Andou doze anos a mamar cocaína; e gostava. O Herr pegou no Teatro Grego e inventou a Tragédia Moderna. O Herr era muito giro. Foi o primeiro a encarar a criança em nós e ver nela sementes indeléveis do adulto nós. O Herr fugiu do outro Austríaco que afinal era Alemão; o Herr morreu na Londres ainda virgem das asas das V2, mas se as tivesse baptizado seriam EU3. Gosto do Herr. Não me recordo de ter tido vontades infantis de matar o papá, e quanto à mamã, faz-me falta e amava-me; o Herr deve ter sido apalpado por um tio, a achava que todos os tios eram mãos largas de ternura. O Herr era giro, o Herr é importante. Mas não se curou a ele próprio, e cá para mim pôs mais gente doente do que havia dantes. O Herr colocou o sexo na ribalta de onde ele nunca tinha saído, e ficou contente. Era uma espécie de Hollywood antes do tempo, ganhando a vida com re-runs. Gosto muito do Herr.

quinta-feira, maio 25, 2006

0 - 1

Na tonalidade rosa de um poente adiado
Quando um sol câmara lenta se esconde a custo
Corro o Porto costumeiro com a costumeira sensação de novo
A bela cidade condensada na Ribeira
As curvas do rio até à Arrábida
Entrei de metro na cidade pela primeira vez
Do cimo da D. Luís não se perde um centímetro

Este eléctrico desejo que trespassa em rectas a urbe sinuosa
E cais com lodo e a streat car named desire
E o riso que me veio uma vez na Brasileira
Quando vi subir desengonçado um outro eléctrico que prometia Prazeres
E a bica e o cigarro e o tal carro fúnebre
( Na companhia do desgraçado do Pessoa que não merecia aquela estátua )
Disseram-me que um dia andaria nele uma derradeira vez

São assim as públicas histórias de transportes públicos
Em cidades adversas em sentidos distintos
Que os rios explicam
Um amplo como abraço ao mundo
Outro estreitando-se como quem recusa o mar, partir
Que os metros explicam
Um enterrado como sonho mau
Outro entremeado de luz e cova

Olha, a selecção perdeu
E eu nem sequer sofri

segunda-feira, maio 22, 2006

Stelle

Acreditas em estrelas? Claro, elas estão lá. Não, não é isso; acreditas que elas influenciam cá? Elas estão lá, nós cá; nós olhamo-las; elas influenciam o nosso horizonte. Sim, mas o nosso presente, o nosso futuro; são sina? São sinais. Mas dizem? Contam; em todas as contas contam; e se não se vêm por nuvem ou tecto, contam ausência; e se brilham mais intensamente nas noites sem lua ou menos quando ela está cheia, contam intensidades diversas. Sim; mas guiam-nos? Eu perfiro o GPS.

quarta-feira, maio 17, 2006

Búzio

Um poema de nada
Vazio como búzio
Lá dentro onda
De um mar vazio

Ilusão auditiva
Ainda tenho o búzio
Onde primeiro ouvia
O mar

É grande
Um palmo de miúdo
Vermelho velho
Ainda tem o som
Dentro

Por cima áspero
Com restos de verniz
Por baixo liso rosa
Feito para ouvir
O mar

Veio de África
Com uns tios
Prenda bonita
O mar nos ouvidos
Ao alcance da mão
Da imaginação

Um búzio de mar cheio de mar
E de mim menino a ouvir-lhe o mar

terça-feira, maio 16, 2006

A Falta de Assunto

Os que escrevem crónica em jornais costumam, à falta de assunto, comentar a falta de assunto. Tentadora, a falta de assunto: neste país não se passa nada; neste mundo não há novo; em mim nem vislumbre de diferente. Com mais ou menos talento, linha após linha de falta de assunto preenchem-se as linhas contratadas. Ando com o mesmo problema, mas como efectivamente não me são requeridas linhas pré-medidas, não vivo disto, nem para isto, não seria importante não tendo assunto usar a falta de assunto para ter assunto. Podia falar de Brasil, não me apetece. Um fraudulento extraditado, dez famílias importadas recebidas por sessenta imbecis, uma revolta de presos regidos por celulares. Dava um bom texto. Mas antes a falta de assunto.

quinta-feira, maio 11, 2006

Não há Gelados Para Góticos

“Não há gelados para Góticos!” exclamei par mim quando dei com ele. Alto, magro, de negro dos pés à cabeça munida de rabo de cavalo negro; Gótico. Comia, com ar de que prova manjar divino, um corneto de morango. E a cor! O carmim do gelado explodia como uma rua de San Sebastian antes do cessar-fogo.

Não há gelados para Góticos, repito para mim lentamente, agora mais calmo. Admito que o vermelho-colorante pode substituir o rubro-sangue, que corneto pode ser um nome satânico, mas resta-me a sensação de incongruência. A Häggen Däss tem naquela Tribo um nicho; espero que o explore. Com o calor, o negro pesa.

quarta-feira, maio 10, 2006

Aguardo Asas

Na demente corrida diária
No escoar vertiginoso do dia
Na água revolta do poente
Na foz que ainda hoje era nascente

Passo e passo devagar
Desisti de me fazer andar
À velocidade do redor
Ao ritmo alucinado do real

Deixo-me marco milear
Imóvel com a estrada
Vejo passar quem quer
Ir veloz, produzir

Não que tenha desistido:
Eu vejo
Não que considere não voltar:
Eu estou

Apenas mais lento
Opção catárquica
Escolhi casulo
Aguardo asas

segunda-feira, maio 08, 2006

A Copa do Mundo

O Berço da Nação desceu de Divisão; o Benfica fica em terceiro, o Sócrates baixa logo a gasolina, enquanto ( ironia mais fina só Voltaire, e nos melhores dias ) encerra maternidades; A fúria Vimaranense cerca o estádio ( será que ainda se chama Afonso Henriques? ) e fera faz espera à própria equipa, querendo imitar o matricídio responsável por 900 anos de Pátria. Seis milhões de Portugueses defraudados por um Holandês simpático mas não voador, podem consolar-se a encher depósitos com uns cêntimos de saldo, pensando que era no próximo fim de semana que iam a Espanha poupar vinte euros a fazer o mesmo. Mães, pais, grávidas e absolutistas concelhios fazem marchas de horas e de quilómetros porque não querem andar dez minutos de carro até à maternidade do vizinho. A minha Académica safa-se por um pelo púbico ( como se dizia nos tempos em que eu era um orgulhoso mancha negra ( todos temos manchas negras nos passados )), mas eu não sou proprietário de nenhum motor; pode ser que olear a bicicleta fique mais barato. A nossa Terra, caros concidadãos, é um rolamento lubrificado a petróleo povoado de parvos. As nossas vidas são redondas, como bolas, como pneus. E não adianta ficar na berma das numerosas vias pontilhadas de recintos desportivos dizendo, orgulhosamente sós, isto não me afecta: O Berço da Nação desceu realmente de Divisão; O Benfica é uma equipa de 3º. ( posto ); A gasolina baixou ( no posto ); não parimos na nossa terra mas não queremos parir em terra alheia. E todos, embrulhados na mesma manta de retalhos pindéricos, sonhamos agora baixinho erguer a Copa do Mundo, cheia às bordas de um Porto de esquecimento, e cantarolar muito ternos “ a copa do mundo é nossa”.

quarta-feira, maio 03, 2006

Soundbyte

Quero o soundbyte nético
Palavras percutidas
Batidas até sem som

Quero este keyboard tambor
De tom de selva
De estertor

Quero ruído vivido
Desmerecido de silêncio
Quero bombo
Rombo
Guincho desmembrado
Insonoro de dor auricular

Surdez canora
Sonora sem penas
Apenas
Uivo turvo
Construção notal

segunda-feira, maio 01, 2006

É Sexta

É sexta de sol e logo vou ver o Sassetti. Gil Vicente a soar Jazz num três quartos de cauda que ali parece ter a cauda toda abençoado o traço de quem traçou aquela sala. Vou mais a Maria ouvir Alice que acompanhava um filme de ver que eu não vi; ouvi e fez-me chorar à beira Ria sentado num toco de eucalipto não são só as cebolas vegetais pluviantes. Tinha a cara cortada de ter caído mas chorava porque aquela Alice com a Ria plana como uma autobähn e coisas bicudas no peito me deram um suspiro a ouvir o piano e talvez o sol da manhã zurzindo no olho tenha ajudado, ou talvez eu queira querer que sim; hoje não choro. Vou ouvir Sassetti ao vivo a última vez que o vivo era ele e o Laginha e a Maria João e uma orquestra e o Gil Vicente abençoado o braço de quem traçou aquele canto. Também havia Maria naquele dia mas dá-me a impressão que ainda não havia Alice só Indigo, mas não digo de certeza certa; não houveram lágrimas, essas eram para depois, num até Jazz me parece agora, porque é quê as memórias se medem às músicas? A Maria chorou, mas não de tristeza, de alegria incontida sentida cá fora num lavar de rio de antigamente quando não havia máquinas de lavar por dentro. Os sacos lacrimais são metáforas bipolares ao contrário das nuvens que só choram quando aumenta a humidade e baixa a temperatura. Temperamentais para sacos, I say, não se remetem ao papel de contentores, viram-se por dá cá aquele vento, quer de Sul, quer Nortada. Abençoada então a música, a lágrima e pianos com cauda que nos fazem abanar a nossa numa alegria cachorra de ser sexta de sol e ir ouvir logo o Sassetti.