segunda-feira, julho 24, 2006

Da Cor, do Excesso de Cor e das Tonalidades Canoras

A single kiss could lead to heaven canta o King Kole no stereo acompanhado pelo George Shearing em 1961. Um preto cantor e um branco cego. Começavam os raging sixties. Ho yea! Um pianista cego num meio sonoro. Não há imagem para ninguém. És tão antigo diz-me uma amiga. E sou. Será que o George sentia a negritude do Nat pela textura forrada da voz? Acredito que sim; tinha ouvido mais que suficiente. A Lei das Compensações é profundamente inconstitucional, e ninguém faz nada. Quatro melhores sentidos em troca do quinto. Compensa? Troco o meu direito por estes, prescindo de ser Cidadão da Real República da Bela Vista para ser súbdito do ouvido nariz sabor e cheiro. Numa plebeu nos outros funcionário de topo. A Lei das Compensações deveria incluir cláusulas compensatórias. E avisos, como os maços de tabaco. O preto achava que fumar lhe aveludava a voz; morreu como todos os fumadores invertebrados. Agora mandou-me un void and empty space que quase me preencheu. O preto canta mesmo bem. O cego é extraordinário também, como diria Gil noutro mais tropical contexto. Que também é preto mas tem três olhos. E com este são três discos. O primeiro nem nome tem, é só Nat King Cole sings George Shearing plays, o segundo é o Acoustic o terceiro é o Prenda Minha do Caetano. O meu preto é o preto que ele descreve por lá. Vão lá ver e percebem. Já desejei um mundo daltónico, já quis Luz, agora só me apetece ouvir o Haiti no Tropicália 2. E o Stevie cantado pelo Ministro. A percepção da cor é um disparate. Permite as touradas e o impressionismo. Alfa e Ómega um por olho. Devimos ter o olhar analfabeto das bestas. Ouvir é melhor, definitivamente. Por isso calo-me.

quinta-feira, julho 20, 2006

Delta

Cessaste para mim como cessa o rio
Num abrupto arremesso frente ao mar
Deixaste margens casas coisas
Abraçaste a onda solta enfim de mim

E eu que sou costa fiquei como sempre
Virado a poente
Como sempre ciente
Que o sol se põe

Rio de margem sempre par
Pareceu-me ouvir como quem busca mais
E eu abençoado a delta
Sei que mais fica sempre entre parcelas

Vai na maré-alta como sempre foi
Funde ao horizonte o fio das horas
Eu vou-me deitar na duna
Feliz de haver mar
Sozinho e uno

terça-feira, julho 18, 2006

Antero

E da banda de cá uma espécie de silêncio afunda-me o querer notícias da banda de lá. Nos dias em que acreditava em coisas, acreditava na permanência. Agora sei que a ausência é uma planta como outra qualquer. Se regada, cresce a flor, por vezes a fruto; se esquecida no canto do quintal, definha ao sol supremo dos dias grandes. Eventualmente morre. A beleza viva amortalhada nas coisas ainda me exalta; mas a ideia, a ideia jaz. Nos Açores, estive na Igreja onde Antero despachou a vida; a vista é linda, seria ainda mais quando ele a viu última. Calou. Sabia que era um cavaleiro andante buscando o palácio da ventura, e sabia a ara nua e seca. Volta e meia penso nele, na Igreja dele e no mar dos Açores, e tenho para mim que formei a minha vida ilha. Sem porto nem nada, só mar e nuvem. Não irei nunca procurar acelerar o fim, isso sei. Vou gostar de me encher de anos. Mas hei-de de me tornar surdo, cego e depois, havendo sorte, mudo. Uma mudez Anteriana sem o drama de ser eu a fechar o pano. E sem a sombra do Imenso Verso a pairar sobre a pequenez dos dias.

quarta-feira, julho 12, 2006

1º. Ano

“Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.”



Fernando Álvaro Pessoa de Campos

terça-feira, julho 11, 2006

E a Tua Ausência

Hoje queria desistir do dia como desisti de ti, assim, sem fanfarra nem bombos, sem lágrimas ou gritos. Mas o dia não deixou, caindo sereno no seu slow motion urbano, civilizados dias deste tempo, onde se o sol se põe não o vejo, coberto neste pátio granítico pelo verde exuberante, ai as memórias de ti perdê-las como quem perdesse cinco tostões ó que maçada já não compro uma pirata daquelas que traziam cromos com comboios. Nesse tempo eu gostava de comboios, e de pastilhas, rosadas, amorangadas, e fazia balões translúcidos como vejo agora o meu futuro. Uma bolha precária, mas bela por ser precária e amorangada. Olha, perdi-te como quem perdeu a hipótese de uma pastilha. Sei amanhã pela lógica madura das coisas, não me apetece mais hoje venha então amanhã com as cores que trouxer, mas sem ti. Cobra eu troquei a pele e agora a memória da pele jaz escamada em mim; não troquei, só cresci para lá da dimensão cutânea. Amor? Bolas, até dói. Mas dói sem ti, pelo primeiro dia, sem fanfarras nem bombos, só uma banda num coreto de Caminha que tem dois coretos na praça, e onde num Verão quente como vodka eu vi duas bandas em guerra, e uma ganhou por knock-out. É, este dia ganhou-me aos pontos, num fim de tarde de antologia a olhar a Ria cheia de gaivotas das de plástico e sem chorar. Amanhã. Amanhã ás cinco nem chá nem deserto, vento na cara e a tua ausência.

sábado, julho 08, 2006

Fraga

Procuro
E é no espaço que ficou de ti
Aspiro
E dá-me a impressão que tive e perdi

Assim sigo só
Mas não é seguir que faço
Contemplo
Mas já nada há a ver

A mão vazia sempre esteve vazia
E a vontade que tive de ficar
Foi sempre mais que o desejo de criar
Não sou dos que somam

Há em mim o carácter rochoso da fraga
Imóvel só cedendo episódica
Uma ruga ao vento
Um traço à chuva
Uma tez ao sol

quarta-feira, julho 05, 2006

Vento

Depois da ida o regresso para a entrada o ingresso espectáculo da vida quem te encenou ele há dias que acho que és peça selvagem outras homenagem improvisada ao improviso outros marcha militar à civil fardado de cores foscas e ornado de luzes brancas. Assim, liso como a Ria sem vento mas há quinze dias que faz um vento cruel que já perdi a noção de liso, que já não sei de águas mansas. Voa por cima do Mondego um milhafre que não voava e ainda lhe não decidi o agoiro, aqui só voam espaçadas gaivotas, e há uma cegonha também nova nestes céus antes desertos dela. Para mim o vazio vem sempre depois do cheio, vazio é sempre algo que não era, e agora já não é, sou saudades e gosto, masoquista seria se gostasse, mas nada me dá gosto, hoje. Deve ser do vento. Sopra então repentino ou meigo, mas sopra; sê constante nesta equação irresolúvel, falha-me as contas por seres, acrescenta-te à minha banda sonora. Olha, sopra p’raí. Eu ralo-me, mas um ralar de cristão, de fé e mãos vazias, com preces ready-made e fé em tijolo burro ou de vidro para deixar passar a luz.