terça-feira, maio 29, 2007

Outras Marés

Um pinhal rarefeito recebe-me a chegada só pinheiros magrinhos sobre o solo de areia nua em alternância xadrez, mas todos das mesmas cores. Areia suja áspera casca castanha agulhas agudas de verde tinto. Saca ao ombro morder o cigarro caminhar. Antes do jardim, uma lua crescente de brilho incandescente; em pendant, cumulus rosa e branco, em rectângulo de céu um rectângulo de sonho. Do outro lado assam-se sardinhas e joga-se às cartas, e eu tenho fome e saudade de um tecto e de uma porta fechada e de dizer enfim! a este fim-de-semana.

A vida é baile de encontros e desencontros e noto a tendência de acontecerem todos ao mesmo tempo. E do sozinho que nem cão ao acompanhado que nem pulga vão às vezes uns metros, uns minutos, um rabo de olho ou um perfume esquecido que nos vira a cabeça mesmo quando a cabeça nos diz não vires. E depois o certo pasmo de saber que entre alguns de nós o tempo ficou congelado, e a virgula onde a deixamos, e o mas não o desbotou a cascata das horas, o precipício dos anos. As pessoas são iguais debaixo das suas sucessivas cascas, parece-me.

Estarei eu igual? Sim, estou. Não mudei nada. Só mais velho, mais altivo, mais magro. De resto o mesmo. Só, no tecido intimo, se acrescentam matizes que não advinha o tacto, que só dúvida o olho, que não revela o primeiro discurso. Iguais, perante o Deus justo dos desencontros, que nos oferece a rara prenda de nos mostrar, noutra concha, a pérola esquecida das marés de antanho. De novas marés? De outras marés.

quarta-feira, maio 23, 2007

Antes

Antes espelho é agora fumo
O lago que eram os olhos
A lágrima instalada turva
A antes larga e profunda
Superfície do querer

A medida do olhar é volátil
Um álcool que some
Dispensando o sol
Dispensando-me rápido
Do peso da memória

Antes os olhos
Que a memória deles
E depois idos
Os dois
Submersos no fumo

No correr parado
Deste tempo de água mansa

sexta-feira, maio 18, 2007

Desarranjo

Num desarranjo levado pelo vento
Precisamente certo
Vou a pedalar de volta ao lar
Vou a pedalar de ir ao mar

Num equilíbrio sobre as rodas de borracha
Periclitante quase circense
Parte de mim acha
Outra ainda procura

Nesta tardia Primavera
Onde os meus verdes já esmaecem
Desmaio também até ao ano
E sigo pedalando
E sigo pedalando

terça-feira, maio 15, 2007

Mesmo

A hipótese de nada
É o jogo frio de perder tudo
Sabendo tudo

A hipótese é tudo o que é preciso saber
Para saber a sensação
Por antecipação

Nada iguala viver
Pensar é viver
Sentir antes dói o mesmo

Só em momentos diferentes
De resto é igual
Sente-se o mesmo

quarta-feira, maio 09, 2007

Ténue

Pelo passadiço normalmente estreito
Que medeia o coração de outro
Vamos no vai e vem precário
De viver inseguramente no balanço

Levados pela temperatura
Do sangue nuns rigorosos 36,5
E eu, que já estou nos 38
Tenho febre e vou, continuo a ir

Num fandango hereditário
Ou nas redes da família
Tenho outro ponto de vista
Sei-me equilibrado sólido

Estranha dança sem heróis
O dia a dia matizado longo
Um carvão na mão apagado luz
Mas apenas da memória ténue

sexta-feira, maio 04, 2007

Coelhos

Fosse a vida corrida de carros motorizada lubrificada de pneus chiantes e pista definida, com curvas estrategicamente delineadas, feita para pilotos de grandes máquinas e grandes motores e mãos sábias em volantes redondos e fáceis. Fosse a vida plana e em circuíto fechado. Fosse possível ensaiar, medir, repetir até à perfeição última. Mas não é. É a estrada longa, tortuosa, cheia de atalhos cegos, declives e ravinas. Cheia de portagens, de pontes impossíveis, com o piso irregular e massacrado de todos os que a correram antes de nós. É certo que há sombra e regatos e sítios onde comer e dormir. Mas também há o troço intransponível, o dilema trágico, a morte brusca.

Assim, há quem desista de andar. Mas a vida é o tapete rolante da estação do Cais do Sodré sem os coelhos da Paula Rego, e anda sozinha nos nossos pés e leva-nos até outro lado, quer queiramos, quer não. Assim, não se pode desistir sem saltar, e lá em baixo estão os comboios, e doí, ou mata. Vida sem coelhos e com comboios assassinos. É melhor então espreitar a curva próxima, esperar o bom. Ou andar de olhos fechados, esperando não ver o caminho, e não ver o medo.

Tive uma amiga que me emprestou um livro sobre uma gaivota que se transcendia. Eu prefiro os coelhos sem toca, grandes como uma casa, que velam invisíveis marginando o tapete. Mas ocorre-me por vezes transcender-me. Só que não consigo. Vou espreitar então a próxima curva, pode ser a vez da esperança.

quarta-feira, maio 02, 2007

Fada

A vertigem descendente o passo em falso
O Império decadente retalhado em cadafalso
Ai tu musa que me completaste o gesto
Onde depões hoje o ir e o resto?

Sim a coroa ainda a trago mas escondida
A que te dei ainda é minha apodrecida
No fundo de uma gaveta que não abre
Porque não a quero abrir ninguém o sabe

Fui e fui porque sabia
Que o que tinha não o merecia
Era farol para barca já perdida

Olho ainda olho para trás
Para o terreno deserto onde faz
Já muito tempo que eu fui audaz

Mas olho de pena e desalento
Por saber-te sempre o passo lento
Mas olho de hábito canino
Não, eu nunca fui felino

Nem nunca fui feliz contigo
Ou se fui foi de empréstimo e usura
Afoguei-me na taça do umbigo
Tropecei na mistela da candura

Inocência perdi-te
E francamente perdi nada
Tudo o que tinha dei-te

Inocente marcada
Como de estrela a noite
Adulterada fada