quarta-feira, janeiro 31, 2007

Cervantes

Rocinante

A pequena obra-prima de existir
É dar o passo após o passo sem sentir
Ai caminho longo não terminas
Mais além que a vontade que dominas

Rimo ir na caneta que empunho
Como a lança inimiga do moinho
Rimo e vou porque dependo
Da minha projecção do que vou vendo

E o Rocinante de ouropéis velhos
Que cavalgo melhor que ele me deixa
É um sonho montado e não se queixa
Sabendo tão comuns ambos os fados

O gigante esbracejante que me trouxe aqui
É o mesmo do Quixote que te nomeou
Não são as Terras da Mancha que contigo vi
Mas é o mesmo o sonho que nos acordou

Dulcinea

A primeira mulher universal
Foi a mãe Eva
A segunda Atena Colossal
Nossa Senhora foi quarta

Dulcinea del Toboso foi
Forçosamente a quinta
Formosamente imposta
Se descontar-mos Vénus
O que aqui não podemos

Quimera de amor
Fantasia, paixão
Ai sonhos assim
Quantas não são?

Alquebrado velho
Ainda te restava
Em fotografia
E assim não passava

Sancho

E se eu tentasse a trilogia
Ficava para sempre sem o quarto
Como os Mosqueteiros
Amputado

No meu 1º. Quixote
Era o Sancho primeiro
Nunca percebi
Porque dera outro nome ao Livro

Agora percebo completamente
Era o grau académico vigente
Um era Dom
Outro demente

Ou seria o mesmo?

Quixote

Há duas bibliotecas míticas na História
A de Alexandria e a tua
Embora o Eco esteja perto
De pôr aqui mais uma
E Borges dizer que a ideia é dele
Rocinante Dulcinea Sancho
A tua loucura faz quatro
E tu onde estás no meio disto tudo?

No fim?
E se o fim não fosse o fim?

Fim?

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Jonathan

Um pedaço de céu azul entre as nuvens passeia lento em frente à minha janela. Lembro a história maravilhosa de Jonathan que num vale dos Himalaias encontra um solar definitivamente Britânico, equipado com uma colecção de Impressionistas magestosamente Francesa, e uma rebelde anti-chinesa absolutamente bela, fria e determinada. O Lord morre deitado na neve, olhando um pedaço de céu da cor deste, onde as nuvens são iguais às do Monnet que vai ser vendido para pintar uma neve igualmente branca de sangue invasor. E morre feliz, porque recusou um império e acredita que pode ajudar a derrubar outro. Em Português li-a no Tintin, há já muitos anos, acho que nunca foi para álbum. Em Francês, chama-se “L’ Espace Bleu Entre Les Nuages”, a Editora é a Lombard, a Colecção é “Jonathan”, o Autor o Imenso Cosey. Que é Suíço, como o seu Herói. Conheço 13 títulos, metade publicados cá, os outros fui arranjando, e suponho a maioria, se não todos, disponíveis. O meu favorito é o “Kate”. E fora desta colecção, se apanharem coisas como Zélie Nord-Sud, Saigon - Hanoï, ou Zeke Raconte des Histoires, ( estes dois últimos na Dupuis ) vão perceber porque é que um pedaço de céu me dá tanto gozo. E a Kate, já agora, é extraordinariamente Americana.

sábado, janeiro 27, 2007

Da Anatomia

Estruturei a minha cabeça em espirais parvas, que sobem do pouco que conheço a delírios mais ou menos megalómanos. Sou vaidoso, fútil e cruel. Fora isso, gosto da língua, e de mexer com ela. Não gramo a gramática, desprezo a ortografia e não concordo com as concordâncias, mas ao menos sei que elas existem. Rimo para esconder em harmonias sonoras o vácuo do tema, faço o verso em branco quando nem a rima me ocorre. E repito, sei que valho pouco porque nunca ninguém me tentou vender.

Fora isso, e repetindo o outro, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Por vezes, a realidade prega-nos pelos olhos dentro temas óbvios; outras, nada parece merecer uma linha. Tenho dias em que não sinto nada, nem me sinto; tenho outros em que das iras às lágrimas correm segundos, e voltam a correr umas atrás das outras em carrosséis céleres. A minha cabeça trabalha a químicos, o meu coração bate à vista, os meus pés dançam porque amo a música, os meus ouvidos cantam porque adoro ouvir. Fora isso, os meus óculos novos põe-me os olhos mais verdes e comprei umas botas italianas que são um deslumbre.

O verso definitivo será o primeiro ou o último?

Julgar o livro pela capa será o mesmo que julgar o livro pelo título? Já comprei livros de belas capas porque tinham belas capas e li belos livros. Tenho o Lord Jim do Conrad porque gostei da capa, as Memórias do Brás Cubas, do Machado de Assis, foram compradas pelo meu pai numa feira do livro porque ele achou que a lombada valia o preço. Deve ser hereditário. E tenho livros de sonoros títulos que achava que me iam mudar a vida e só me mudaram a intolerância ( para mais ). O aspecto exterior para mim conta, e eu sei que isso é pecado, devemos só olhar os corações. Mas a mim, o coração sempre me pareceu do reino da anatomia.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

XI - Penhoradamente

Correndo o risco de a deixar coxa
À minha obra-prima precedente
Terei aqui de citar na página da frente
A largueza e qualidade no comment

A minha intenção era intentar
Construir um soneto impar
Em que a rima seguisse um padrão âmbar
Misturado com uma cor como que roxa

Por isso como número onze
Da colectânea invernal que este precede
Fica aqui um beijo admirado

A quem perde e em que pose
Tanto tempo precioso e cede
Tanta atenção a este indigno bardo

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Dez Poemas D’Inverno ( Ou queria pôr versos, não me apeteceu escolher, pus os que havia, escolham vocês, e depois digam, ou não )

I - Ruína Romântica

A roda do amor tem aro e eixo
A pedra da calçada duas cores
A porta do quintal tem trinco e fecho
Só meu coração não tem calores

Frio e vento rodopiam na manhã
E têm abraço e propósito
A chuva ao cair tem o chão a recebê-la
E eu sigo assim sem ira e ócio

Não me adianta o eco de mim
Gritado pelas pedras velhas
Habituei o ser assim
Ao deserto de noites vazias

Ocasionalmente cheiro o ar
E o resto do incenso dos teus dias
A sombra nublosa do luar
Lê em mim como só tu lias

Mas não faz diferença
Não pesa muito
Eu ser presença
Sem haver outra

Crónica oca o verso
Um poço de desejos jamais concedidos
Busco a rima e uso
Bocados de mim que julgo perdidos

II - Havia

Do verso como prédio
Já narrei as razões
Esqueleto de aço
Coberto a paixões

Alicerce fundo
Telhados coroados
E no meio o mundo
Dos feitos passados

Escrever para lá
Adivinhar futuro
Não das minhas mãos
Só olho para trás

Fosse minha a vista
De um amanhã provável
Fosse galo em crista
De uma luta afável

Terreiro em mundo plano
Esquecer alturas
Fabricar minúcias
Vácuas duradouras

Às vezes sonho o fim da lágrima
Como o fim do rio numa bela foz
Mas sei a sal temperada a voz
E o coração instância última

E o meu é triste
Porque assim nasceu
O meu prédio é pardo
Contrastado a breu

Ai mas quando amanhece
Entre rosas e malvas
E abro janelas para nuvens calmas
Sei-me devagar para além de triste

E abro a porta à esperança fugidia
Num rompante meigo de alegria
Misto de mim e esperança minha
E acredito em mais, muito mais que havia

III - Tronco

Na curva na lomba para lá da estrada
Em que espera solene uma outra alma
Falta-me outro passo outra encarnação
Um recomeço um ir uma nova canção

O verso imbricado em lira não me diz
Nem metade das coisas que vi e fiz
Ler o futuro entre as linhas não sei
Cego entre um passado que nem passei

Tento na bruma a definitiva quadra
A palavra moldura que a vida enquadra
Mas resto vazio oco e na mudez primeva
Como um tronco seco que o rio leva

IV - Espirito

Perdi alguns dias em nuvens de haxixe
Afundei-me lento em largos copos
Aprendi que o mundo é pouco plano
E que os nossos olhos mudam com o vento

Alternar realidade e substância
Sabendo substantiva a alternância
Tomar a alteridade como norma
Saber o mundo composto de mudança

Dois dias sem dormir
Um dia sem comer
Quarenta pelo deserto

O riso de erva ecoava nos arcos do Aqueduto
Subíamos descíamos dávamos três palmadas na estátua do Camões
E ia-mos comer batatas fritas à Rua das Matemáticas
Sem cálculo

E penso o composto como adubo
Não tanto como bloco de armar
E penso que me passaram pelos olhos novas qualidades
E consciente e inconsciente fogem ao conceito de juízo

Dois dias sem dormir
Um dia sem comer
Quarenta pelo deserto

Santa Teresa d’Ávila flutuava em bolores
Santo António pregava a peixes
Uma vez na Figueira falei com ursos
E deixava-me cair onde calhava

Tenho para mim que abrir os olhos
Nos faz tanto mal como bem
E no entanto há que abri-los
Mesmo quando não convém

Dois dias sem dormir
Um dia sem comer
Quarenta pelo deserto
E espírito, espirito aberto

V - Paixão

Esperar por ti é dor e sossego
Porque esperar custa
Mas eu sei quem espero

Renunciar ao amar
Sempre me pareceu raro
Amar não admite estar errado

Não te amo mais
Não pertence ao momento
Nomeia o processo, o movimento

Não te amo mais
Não o diz o amante
Amar é sempre a constante

O que derruba então
O amor do peito, da cabeça, do gesto?
O medo, o hábito, o desejo, o resto?

Não sei
Amo todas as mulheres que amei
Sucedem-se no tempo numa cornucópia

Eu fico elas vão
E aparecem outras num baile de caras
E eu visto em máscara uma nova paixão

VI - Alarve

Ai as saudades que eu tenho dos desejos que tive
Dos cumpridos menos
Dos por cumprir mais
Ai as saudades do querer sem poder e sofrer por sofrer
Numa espiral de dor aguda de masoquista êxtase

Cavaleiro andante de comprida espada matador de dragões
Não pude ser
Faltava cavalo dragão não havia e a espada era uma cruzeta velha
Curta e de madeira
E as princesas dormidas ou não eram todas parecidas com as bonecas
Das minhas irmãs

Cedo percebi que os conquistadores massacram
Por isso nunca quis conquistar nada
Cedo entendi que os descobridores persistem
E a minha preguiça nunca me abandonou
O mundo da minha almofada é tão mundo como o vasto mundo
Por isso durmo sonho e não recordo nada

Cresci para cima e para os lados como toda a gente
Tive a minha dose de felicidade amor e aguardente
E continuo a sonhar e a não lembrar
Menos masoquista e menos contente

E dos desejos por cumprir pode ser que numa tarde
Pelo sol poente numa curva da estrada
Me façam matreiros uma espécie de espera
E se cumpram todos como farta fera
Por fim satisfeita em festim alarve

VII - Ovo

Se uma muralha de indiferença te circundasse
Sem ameias nem nada
E voltado finalmente para dentro definhasses só
Sem desejo nem nada

Olharias as pálpebras por dentro
Numa circum-navegação pequena
E não chegarias ao fim como o outro
Seria o teu índio o primeiro

Nau catrineta de cerceadas velas
Vai na corrente da tua própria ancora
Afunda-te e sê o único elo de ti
E mesmo o mar que te cobre não exista

Volta a ser o ovo que nasceu com tua mãe
Ou o ovo da tua mãe que nasceu com a mãe dela
Até não te saberes nem ovo nem mãe nem mar
Donde tantos ovos como tu saíram

E jurando uma jura prenhe
Sê se ainda te restar essência
O ovo grande desse mar de ovos
Mas não choques

Deixa-te estar numa infértil grandeza
Sem ameias nem nada
Sabendo agora sim nada de outro
Sem desejo nem nada

VIII - Redenção

Quando perdia as horas a perder-me em ti
Pareciam poucas as horas em ti
O poder redentor das distâncias

Já não penso já não vejo já não sinto
Nada do que dantes me fazia eu
Mudar na leveza da brisa dos dias
O poder redentor do vento

Ai a mão vazia já nem sabe
As gramas de calor que a queimavam
O poder redentor do gelo

Sou aquele que era antes de ti
Fazes-me a falta de um futuro
Que tornaste impossível
O poder redentor do sonho partido

Mais belo mais ágil mais puro
O amor a mim próprio
Herdei de ti a confiança
O poder redentor da estima

E noto que talvez tenha mudado
Não por tua causa, mas por tua ausência
O poder redentor de não ter ninguém

Agora já não és sombra no deserto do desejo
E isso é bom

IX - Icebergue

Dá-me Deus bela e sinuosa
Numa janela ou numa sacada
Uma mulher como uma enseada
Onde eu me acoite na noite cansada

Abre-lhe os braços num benvindo imenso
Aquece essas águas em que eu submerso
Possa ser o esguio senhor de um cio
Ao lado dela no lugar vazio
Não do coração mas de um peito frio

O amor é um icebergue invertido
Com a parte maior ao cimo dos mares
Todo ele brilha e todo ele é grande
Mas o que ele é não é bem aquilo

Sigo a seta como me ensinaram
Almejo a meta como peremptória
Mas sei que não reza a história
Dos fracos como eu não resta memória
Mas o que eu quero não é bem vitória

X - Submisso

Pela usura penetrante dos aromas
Pela lisura perfurante das peles
Pelo toque pelo beijo pelo
Esvoaçar constante do cabelo

Deixa que em caixa de segredos mágicos
Eu me guarde para ti como uma promessa
Mas promete que me abres num dia de chuva
Em que a promessa de mim todo te apeteça

Pelo palomino pálido da pradaria imensa
Pelo azul da baleia azul calcorreando o azul
Pelas costas prateadas do gorila nas encostas verdes
Pela união das térmitas nos seus castanhos cones

Deixa-me ser um animal de companhia
Que se esquece em casa todo o longo dia
E que no abrir cansado da porta de entrada
Aparece surpresa mansa e desarmada

Por mim que mereço e sou bom
E faço tudo o que me mandam e mais
Por mim outra vez porque te mereço
E por ti porque acho que mereces mais

terça-feira, janeiro 16, 2007

É Suposto Dizer Sim ou Dizer Não

É suposto dizer sim ou dizer não. Eu digo que não sou eu quem tem de dizer. É uma decisão pessoal. Tem a ver com dois, pelo menos, futuros. Tem a ver com maternidade e talvez com paternidade. Não, não tem a ver com fé, esperança e caridade, nem com a precisão cientifica. Tem a ver com necessidade económica, pressão social, azar ou sorte. Não tem a ver com o meu voto.

Quer isto dizer que me abstenho? Não. O facto de não ser capaz de resolver uma equação de terceiro grau não me permite ignorar a matemática. O facto de um governo apoiado por uma maioria absoluta não ter coragem de legislar sobre esta matéria permite-me chamar ao seu primeiro ministro covarde, oportunista e escória da sociedade civilizada, mas não me permite votar a favor da criminalização do aborto.

Porque, não haja ilusões, se a sociedade, na sua grande maioria, não considera um comportamento como criminoso, esse comportamento deve ser descriminalizado. E vale hoje para o aborto, que é uma prática normal, e tem sido ao longo de toda a história. Polémicas à parte, semanas à parte, pequenos corações latejantes, Cristo e as criancinhas, falências políticas e trincheiras mediáticas à parte, trata-se aqui apenas de tirar aos tribunais uma competência que possuem: Mandar para a cadeia mulheres por crime de aborto.

Voto sim. Porque estive tão perto do aborto como toda a gente e conheço-lhe a cara suja, as maneiras insidiosas e o coração de fuinha. Deste aborto que temos. Há outros, claro. Mas estamos a falar do vulgar e comum. Voto sim porque só deve ser da esfera de todos o que não é da minha esfera. E, ironia a parte, a barriga de uma grávida é dela, é da sua exclusiva responsabilidade. E como disse acima, são dois futuros, pelo menos. Mas só uma responsabilidade. E voto sim, pronto.

Acorda! ( a M. )

Porque é que a inteligência, supostamente o maior dos bens, a suprema qualidade, não nos protege da estupidez quadrúpede, do medo imbecil, do receio absurdo, da dúvida pueril? Porque é que ver mais longe significa, bastas vezes, ver mal ao perto? Génios, aos montes, conhecidos pelas distracções, fobias, manias, extravagancias e maldades? E estúpidos, como portas, como gonzos de portas, como pregos de portas a andar de leve pela vida e tudo corre bem, e tudo é liso, e tudo é bom. Será que como a múmia, a inteligência está munida da respectiva maldição?

Há uns anos, dizia o Isaias, o do Benfica, “O Isaias nunca foi problema, foi sempre solução”. Há menos anos, dizia-se, já no Sporting, “Edmilson resolve”. A inteligência, se fosse futebolista diria, como o insigne Portista, “Prognósticos só no fim do jogo”. É uma ferramenta, a inteligência, e vale pelo uso que lhe damos. E, brilhante ou não, não vale nada nas mãos de quem não a quer fazer valer. Eu sei, eu sou um desses. E conheço muitos como eu. Mais brilhantes, menos brilhantes, mas desajustados ao extremo da inércia, incapazes de sair de casa pelo próprio pé, de alinhavar duas palavras, de gritar a revolta ou sublinhar o conforto. Porque somos inteligentes, julgámos, ou fizeram-nos julgar, que herdaríamos a terra. E o factor trabalho nunca foi incutido, o factor carinho nunca foi medido, o factor exposição nunca foi descoberto. E o desajuste entre o que vemos e o que somos e o que queremos ser e ter deixa-se ampliar pelas faculdades cognitivas. A inteligência é uma maldição. Mas não é a maldição da múmia.

A maldição da múmia implicava a perturbação do sono do ente que espera, cumpridos os rituais, uma vida eterna na companhia dos seus deuses. A maldição da inteligência não tem nada a ver com sono, mas com o desejo adormecido, com a inércia de ver como se faz e achar que compreender é fazer andar. Não é. O deus da inteligência é a ideia de si própria, e não tem pés de barro, mas sim pés de chumbo. E requer toda a energia pessoal para evoluir. Senão é, como dizia Onassis da Callas: foi um belo apito, mas agora está estragado. Deixou-se morrer a Callas. A minha inteligência também andou morta durante alguns anos. E a tua, se não acordas, vai-te morrer aos poucos.

Acorda!

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Comunicar?

Compete a quem escreve descrever o truque? Ou magicamente apresentar o texto e dizer: Ei-lo! sem escalpelizar a virgula, sem escamar a trama, sem descarnar o fio de cobre improvável da electricidade de comunicar? Escrever sobre. Sobre papel. Sobre o mecanismo. Sobre mim e o outro e eu sendo outro e sobre ti sobre mim ou sobre ti sob o horizonte? A poesia é fácil quando se sofre mas há hinos à alegria a atravessar os séculos.

Comunicar? Receptor emissor mensagem ruído canal código. Escrever é comunicar?

Quando escrevo para mim comunico-me? E se a mensagem é confidencial e eu o intruso a ler-me? E se o canal está imbuído do ruído do ego? E se me não encontro a ouvir distraído no ler ou aconchegado num lar demasiado meu? Não, não me parece que escrever para mim seja comunicar. Registar, relatar, descrever; não comunicar. Isso implica outro sujeito. E esse sujeito deve querer ouvir.

O símbolo surgiu antes do signo, o significado é prévio ao significante. E se no princípio era o Verbo, a palavra é o que nos resta do Divino. Pode já estar morto, mas ainda o ouvimos. Mas, isso é certo, ele não pretendia comunicar. Não tinha, de Uno, ninguém com quem. O nosso Universo é filho da mais desesperada das solidões. Ou um mero embuste teológico. Fomos criados à imagem e semelhança de um mudo?

Certos como uma hieroglífica certeza, a que acedemos por janelas estreitas, olhamo-nos nos olhos e trocamos de língua e ensinamos e aprendemos; apreendemos? Não, não me parece. Resta-nos a profunda mudez fundadora, o grito que lançamos no nascer. Razão tinha Eva, que recusava ordens não escritas, razão tinha Moisés que trouxe a Lei em tábuas, razão tenho eu quando me recuso entender-me, codificar-me, vazar-me em molde.

Comunicar?

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Ver

No meio da neutralidade possível
No passo dado de acordo
No recordo
No esqueço

No que ficou de ti
No que ainda dou de mim

A pausa
No ir e vir das brisas

Corre um sangue no peito
Vermelho novo arterial
O pulmão sorve um ar de montanhas acessíveis
E uma espécie de esperança
Como uma espinha na garganta
Ou uma dor difusa
Preenche-me

Haver nas mãos mais

Corri a cidade e a cidade percorreu-me
Simbiótica a vida de andar
A deixar sobre mim os dias

O manto de ser
O véu de parecer
O estar onde estar
A necessidade de ver

terça-feira, janeiro 09, 2007

Soluço

Estirado numa rede de palavras tecidas da fibra vegetal dos meus músculos carnívoros, estou eu pendurado em mim como um sorriso suspenso de uma árvore o que resta do gato de Alice quando Alice se acha só. Só que eu não tenho Alice que fascinar e assustar ou miar para. Só sou eu desaparecido numa autofagia de ar e nada.

Uma bota de sete léguas, quanto medirá uma légua, para ir rápido e voltar rápido e sair e voltar num pas de deux sem a graça das sapatilhas e a justeza dos collants. Ser maior querer ser maior, toda uma infância de querer ser maior e depois parar de crescer durante uma adolescência de querer ser diferente de mim e de todos e depois dar de cara com um adulto que afinal não se cresceu para ser. Se as palavras fossem um baralho de só cinquenta e duas cartas, se o único jogo fosse o burro, que faríamos todos quando descobrisse-mos os jockers?

Deixar de fumar tem sido fácil para os cigarros que trago no bolso, o último maço que ainda abri e que continua por fumar todo. Estão felizes, não sabem da inquisição do esqueiro, da vala comum do cinzeiro. Eu, pastilhado e acalmado, vou aguentando e cada hora que passa é mais uma hora que passa. Mas o meu nariz revoltou-se e chuta-me cheiros fortes e estranhos, e as minhas mãos ocupam-se a criar volteares novos para esconder que já não tem parceiros.

Empenhados em construir o Homem Novo, muitos julgaram descartável o Homem Velho. Empenhados em defender o Homem Velho, muitos julgaram descartável a mudança. Na minha terra, a ponte que não leva a lado nenhum está agora sempre cheia de gente. Vão, cruzam o Mondego, voltam. Como um periscópio que quebra a superfície de um mar novo, esta ponte. Como uma mirada para o futuro, um soluço nas águas.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Linha

O verso consentido que procuro
Procura-se nele mesmo intrometido
Sentir mais que escrever procura a mão
Sentindo pelo tacto outro sentido

Como transpor a ponte aérea
Entre o que tive em mim e já não tenho
Sabendo que o que tive permanece
E não o perco mesmo que perdido?

Consumisse a memória o seu peso em incensos
Numa névoa perfumada doce e depois omissa
Largasse-se o eu em lastros sólidos
Sobre o resto da vontade submissa

E depois escrever no vácuo o sentimento
Na exacta medida de o viver
Traçar uma linha divisória
Entra a mão a alma e o saber

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Da Matemática

Capaz de atar uma pedra brutalmente metafórica a este pescoço largo, lançar-me borda fora desta vida, ir. Voar baixo como pássaro cansado num horizonte baço, ave peralta aterrada em lodos, filho de lamas e de desejos baixios. Parecem-me as minhas mãos longe e as vontades básicas. Filho do desejo, abandonaste lar e esperança, e a caridade nunca olhou para ti, nem tu para ela.
Na nova matemática do ser, tu que nunca soubeste a conta, erras porque és, e mais não tens que uma soma de nadas.

Ver para lá da montanha, e compor em tipo raro uma prova tipográfica de um além possível. Saber-me sonho atormentado, pesadelo plácido. Ver no olhar de quem me quer o meu olhar de querer, amar perdidamente porque me encontro em ti. Fazer a pirâmide do verso pare me eternizar nela, e estar nela esperando a renovação da voz. Filho do sol a chuva molha-me de um desgosto etéreo, vão.
Na nova matemática do ser, tu que contavas pelos dedos, erras porque sim, e mais não tens que a consequência de agora.

Trepo a encosta porque a sei descida; no topo acendo o cigarro mais gesto que vontade; desço outra encosta porque a sei subida. A minha cidade corcovada chama-me e eu vou por ela palmilhante e doce. Sei as casas as árvores os pássaros e as pessoas; sei-a toda. E deixo-a vestir-me o verbo de som e cor, de vento e mais. A minha cidade ama-me porque eu sou dela.

Na nova matemática do ser, tu afirmas física, e filosoficamente erras.

quarta-feira, janeiro 03, 2007

E Sonho Outra Vez

Absolutamente imerso na paisagem de ti derrete-me em glaciares vetustos a alma outrora ardente. O vento quando passa passa para onde diz a folha ainda agarrada ao ulmeiro que ainda não sabe que não é eternamente verde. Outono foi Inverno é e eu já não sei se me agarre se siga sub-reptício o vento para lá aonde foi. Eternamente imerso num oceano de dúvidas bóio entre águas de uma sede díspar. Voltar onde nunca estive será regressar a amanhã? Dá-me, ó sono, a vontade de sonhar um concreto eu, dá-me, ó sonho, um acordar distinto de ontem.

O meu par de mãos desamparado rege uma sinfónica aguda de dores pretéritas, e o som não sou eu nem ela, nem sequer é som. É um ruído de fundo, uma estática, em que eu estático mergulho em umbrais de portas ocas. E estas construções de palavra suspeitas de baptizar sentimentos são igualmente vagas, de um oceano meramente ondulado sem odor nem tinta nem sequer eu no meio da onda procurando tonas respiráveis.

Assumo a necessidade irrevogável de alguém como um homem condenado à própria sombra. Tenho dois olhos que vêem dois mundos harmónicos e belos e só uma língua para os contar. E invejo a clareza dos anjos e o planar pássaro dos justos. Como dar num mundo de ser? Serpenteia uma cobra em mim e a corrente sanguínea arrasta-me o corpo num vortex de memórias fixas. Sonho. E gosto. Na madeira da realidade a plaina do possível, o bisel da vontade.

O tempo escorre por mim como uma chuva de Maio, densa e aromática. Um chá de ervas em que nunca me deitei aquece a veia, depois a alma, e o coração descompassa e bate uma vez por ti, assim. A memória do teu gosto diz-me que ainda gosto, a sombra no teu rosto diz-me que te esqueça. E eu lembro porque não sei mais. Esfolado em pele de animal seco a um sol improvável, a substância de mim está perdida na realidade palpável. Aquele que vejo no espelho diz-se eu mas eu não lhe reconheço crédito. Um débito de mim paira à minha frente. E sonho outra vez.

terça-feira, janeiro 02, 2007

Presépio

E o indistinto som do indistinto ser
No admirável vazio de sentir
O eco do que fui numa parede branca
A cor do que sou desbaratada

Vem e faz de mim algo
Chama-me barro e faz de mim peça
Num teatro de ti e mim
Cena a cena compõe
Um drama de costumes
Sem vestidos
Nu

Brilhas
Sobre mim brilhas numa espécie de Belém
Eu o magoado rei do teu presépio efémero