I - Ruína RomânticaA roda do amor tem aro e eixo
A pedra da calçada duas cores
A porta do quintal tem trinco e fecho
Só meu coração não tem calores
Frio e vento rodopiam na manhã
E têm abraço e propósito
A chuva ao cair tem o chão a recebê-la
E eu sigo assim sem ira e ócio
Não me adianta o eco de mim
Gritado pelas pedras velhas
Habituei o ser assim
Ao deserto de noites vazias
Ocasionalmente cheiro o ar
E o resto do incenso dos teus dias
A sombra nublosa do luar
Lê em mim como só tu lias
Mas não faz diferença
Não pesa muito
Eu ser presença
Sem haver outra
Crónica oca o verso
Um poço de desejos jamais concedidos
Busco a rima e uso
Bocados de mim que julgo perdidos
II - HaviaDo verso como prédio
Já narrei as razões
Esqueleto de aço
Coberto a paixões
Alicerce fundo
Telhados coroados
E no meio o mundo
Dos feitos passados
Escrever para lá
Adivinhar futuro
Não das minhas mãos
Só olho para trás
Fosse minha a vista
De um amanhã provável
Fosse galo em crista
De uma luta afável
Terreiro em mundo plano
Esquecer alturas
Fabricar minúcias
Vácuas duradouras
Às vezes sonho o fim da lágrima
Como o fim do rio numa bela foz
Mas sei a sal temperada a voz
E o coração instância última
E o meu é triste
Porque assim nasceu
O meu prédio é pardo
Contrastado a breu
Ai mas quando amanhece
Entre rosas e malvas
E abro janelas para nuvens calmas
Sei-me devagar para além de triste
E abro a porta à esperança fugidia
Num rompante meigo de alegria
Misto de mim e esperança minha
E acredito em mais, muito mais que havia
III - TroncoNa curva na lomba para lá da estrada
Em que espera solene uma outra alma
Falta-me outro passo outra encarnação
Um recomeço um ir uma nova canção
O verso imbricado em lira não me diz
Nem metade das coisas que vi e fiz
Ler o futuro entre as linhas não sei
Cego entre um passado que nem passei
Tento na bruma a definitiva quadra
A palavra moldura que a vida enquadra
Mas resto vazio oco e na mudez primeva
Como um tronco seco que o rio leva
IV - Espirito
Perdi alguns dias em nuvens de haxixe
Afundei-me lento em largos copos
Aprendi que o mundo é pouco plano
E que os nossos olhos mudam com o vento
Alternar realidade e substância
Sabendo substantiva a alternância
Tomar a alteridade como norma
Saber o mundo composto de mudança
Dois dias sem dormir
Um dia sem comer
Quarenta pelo deserto
O riso de erva ecoava nos arcos do Aqueduto
Subíamos descíamos dávamos três palmadas na estátua do Camões
E ia-mos comer batatas fritas à Rua das Matemáticas
Sem cálculo
E penso o composto como adubo
Não tanto como bloco de armar
E penso que me passaram pelos olhos novas qualidades
E consciente e inconsciente fogem ao conceito de juízo
Dois dias sem dormir
Um dia sem comer
Quarenta pelo deserto
Santa Teresa d’Ávila flutuava em bolores
Santo António pregava a peixes
Uma vez na Figueira falei com ursos
E deixava-me cair onde calhava
Tenho para mim que abrir os olhos
Nos faz tanto mal como bem
E no entanto há que abri-los
Mesmo quando não convém
Dois dias sem dormir
Um dia sem comer
Quarenta pelo deserto
E espírito, espirito aberto
V - Paixão
Esperar por ti é dor e sossego
Porque esperar custa
Mas eu sei quem espero
Renunciar ao amar
Sempre me pareceu raro
Amar não admite estar errado
Não te amo mais
Não pertence ao momento
Nomeia o processo, o movimento
Não te amo mais
Não o diz o amante
Amar é sempre a constante
O que derruba então
O amor do peito, da cabeça, do gesto?
O medo, o hábito, o desejo, o resto?
Não sei
Amo todas as mulheres que amei
Sucedem-se no tempo numa cornucópia
Eu fico elas vão
E aparecem outras num baile de caras
E eu visto em máscara uma nova paixão
VI - AlarveAi as saudades que eu tenho dos desejos que tive
Dos cumpridos menos
Dos por cumprir mais
Ai as saudades do querer sem poder e sofrer por sofrer
Numa espiral de dor aguda de masoquista êxtase
Cavaleiro andante de comprida espada matador de dragões
Não pude ser
Faltava cavalo dragão não havia e a espada era uma cruzeta velha
Curta e de madeira
E as princesas dormidas ou não eram todas parecidas com as bonecas
Das minhas irmãs
Cedo percebi que os conquistadores massacram
Por isso nunca quis conquistar nada
Cedo entendi que os descobridores persistem
E a minha preguiça nunca me abandonou
O mundo da minha almofada é tão mundo como o vasto mundo
Por isso durmo sonho e não recordo nada
Cresci para cima e para os lados como toda a gente
Tive a minha dose de felicidade amor e aguardente
E continuo a sonhar e a não lembrar
Menos masoquista e menos contente
E dos desejos por cumprir pode ser que numa tarde
Pelo sol poente numa curva da estrada
Me façam matreiros uma espécie de espera
E se cumpram todos como farta fera
Por fim satisfeita em festim alarve
VII - Ovo
Se uma muralha de indiferença te circundasse
Sem ameias nem nada
E voltado finalmente para dentro definhasses só
Sem desejo nem nada
Olharias as pálpebras por dentro
Numa circum-navegação pequena
E não chegarias ao fim como o outro
Seria o teu índio o primeiro
Nau catrineta de cerceadas velas
Vai na corrente da tua própria ancora
Afunda-te e sê o único elo de ti
E mesmo o mar que te cobre não exista
Volta a ser o ovo que nasceu com tua mãe
Ou o ovo da tua mãe que nasceu com a mãe dela
Até não te saberes nem ovo nem mãe nem mar
Donde tantos ovos como tu saíram
E jurando uma jura prenhe
Sê se ainda te restar essência
O ovo grande desse mar de ovos
Mas não choques
Deixa-te estar numa infértil grandeza
Sem ameias nem nada
Sabendo agora sim nada de outro
Sem desejo nem nada
VIII - RedençãoQuando perdia as horas a perder-me em ti
Pareciam poucas as horas em ti
O poder redentor das distâncias
Já não penso já não vejo já não sinto
Nada do que dantes me fazia eu
Mudar na leveza da brisa dos dias
O poder redentor do vento
Ai a mão vazia já nem sabe
As gramas de calor que a queimavam
O poder redentor do gelo
Sou aquele que era antes de ti
Fazes-me a falta de um futuro
Que tornaste impossível
O poder redentor do sonho partido
Mais belo mais ágil mais puro
O amor a mim próprio
Herdei de ti a confiança
O poder redentor da estima
E noto que talvez tenha mudado
Não por tua causa, mas por tua ausência
O poder redentor de não ter ninguém
Agora já não és sombra no deserto do desejo
E isso é bom
IX - Icebergue
Dá-me Deus bela e sinuosa
Numa janela ou numa sacada
Uma mulher como uma enseada
Onde eu me acoite na noite cansada
Abre-lhe os braços num benvindo imenso
Aquece essas águas em que eu submerso
Possa ser o esguio senhor de um cio
Ao lado dela no lugar vazio
Não do coração mas de um peito frio
O amor é um icebergue invertido
Com a parte maior ao cimo dos mares
Todo ele brilha e todo ele é grande
Mas o que ele é não é bem aquilo
Sigo a seta como me ensinaram
Almejo a meta como peremptória
Mas sei que não reza a história
Dos fracos como eu não resta memória
Mas o que eu quero não é bem vitória
X - Submisso
Pela usura penetrante dos aromas
Pela lisura perfurante das peles
Pelo toque pelo beijo pelo
Esvoaçar constante do cabelo
Deixa que em caixa de segredos mágicos
Eu me guarde para ti como uma promessa
Mas promete que me abres num dia de chuva
Em que a promessa de mim todo te apeteça
Pelo palomino pálido da pradaria imensa
Pelo azul da baleia azul calcorreando o azul
Pelas costas prateadas do gorila nas encostas verdes
Pela união das térmitas nos seus castanhos cones
Deixa-me ser um animal de companhia
Que se esquece em casa todo o longo dia
E que no abrir cansado da porta de entrada
Aparece surpresa mansa e desarmada
Por mim que mereço e sou bom
E faço tudo o que me mandam e mais
Por mim outra vez porque te mereço
E por ti porque acho que mereces mais