quinta-feira, novembro 30, 2006

Anarquia

Da minha janela ouve-se o pau de bandeira tilintar no vento cordel e aço numa musiquinha deveras irritante. A chuva catadupa-se como se não houvesse amanhã, e amanhã é sábado. A tarde decorre como se fosse necessária, a hora passa como se existisse, e a semana acaba sem nenhum truque cénico, maquinal.

Transcrevo o fim do dia pela necessidade palpável de mexer os dedos, tecla após tecla num sistema infantil. Criança juntando cubos. Mais uma vez invejo a escrita à mão, o caracter estilístico, a poesia do desenho da letra. Mas aqui o apagar não exige esforço, nem deixa mácula no brilho do texto. Mas aqui o bit e o bite casam-se em ficheiros, alfabetáveis, ordenados e fáceis.

A alma do papel almaço, o esboço no esquisso, a precisão da quadrícula, a rectidão da linha. Sebentas, cadernos, a folha solta que se solta e perde, e se acha dez anos depois entre recibos da luz. Agora tenho os versos ordenados como tropa em parada, as prosas alinhadas como urbanização pensada. Falta-me a anarquia do papel presa aos redis do punho.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Xávega

Dar-me para a rima como dar-me p’rai
Fazer certinho como quem não ri
O belo tijolo ainda não parede
A bela bateira a lançar em rede

O inspirado grunhir da besta
Desenhado para domar a floresta
O grito da dor de quem ainda não sabe
O tamanho da dor que a si lhe coube

Tornado soneto em número de versos
Que os decassílabos são estranhos
E a língua que escrevo não cabe em grelhas

Como os bois da tal rede a formar parelhas
Ponho par a par as palavras velhas
Enfeito conceitos quadras e tercetos

segunda-feira, novembro 27, 2006

Sorriso

Fazer o texto como se criasse artesanato bélico; arma-lo de espada lança escudo, elmo armadura e maça. Construir em barragem de imensa altura; reter a água ao ponto de cheia e não poder mais e lançar frase. Repintar a sistina com ainda maior esmero, domar a cor e possuir a luz. Falar. Escrever é reproduzir, não criar.

O canto do melro no cair da noite. Um solo claro de um instrumento obscuro. Um amor. Não me vale a letra. Parca, a letra. E muito mundo e coisas nele. Pouco tempo. Depressa corrias para mim e eu não te sabia lá nem cá. Sabia-me na distante parte do não tu. Ter é transitivo ou transitório?

No cavalo de tróia dos cabelos de alguém fui invadido de saudades doutra. O circular discurso enreda-me e acabo calado. Trocar de quadro é trocar de modo. Parece-me que insistir na letra, não sendo útil, é bom. E o sentido estético do esforço improdutivo sempre me tocou. Antes nada dizer que dizer o nada e essas coisas todas. Trocava qualquer coisa por um sorriso.

sexta-feira, novembro 24, 2006

Meço Distâncias

Meço distâncias no passo dos olhos oblíquos
Avalio o tempo que sobra pelas folhas que restam
Somo a tristeza em dobro porque é liquida
Vejo o mar e sobraço na noção de costa

Tenho na impressão de nada a certeza concreta
Que pesei a alguém que alguém me amou
Tenho na concreta clareza do dia cinza
A massa da nuvem que por mim passou

Debaixo da minha sombra cresce a alga
No duro dos meus olhos anicha a dor
A mão quieta sabe garra e afago
Na boca seca um sabor amargo

Deixo-me e digo-me um adeus acenado
No intervalo entre mim cresce luz
Parto partido e volto invadido
Pela saudade estranha de me saber todo

A evidência do espelho nega-me a transcendência
O atrito do tacto revela-me a substância
Uma leveza de pena ainda assim pesa
Um fio de escrita amarra-me o corpo

Olho um horizonte absolutamente novo
Com um par de olhos que nunca tive
A revolução quotidiana de ser
Faz de cada dia um inquieto impar

Mais ter mais ser mais ver
Antropófago canibal e omnívoro
Sigo por mim uma linha férrea
Feroz de carril e agulha

Saborear a língua numa travessa de folhas
Ser a lombada de um livro aberto
Eixo de mim trancado em mim
Chove-me Novembro gira o mundo em rodas

Olho a janela os rios de chuva o telhado em frente
Olho as minhas mãos que correm as letras
Vejo o verso e sei-o meu e frio
E desejo um desejo ainda que vazio

quinta-feira, novembro 23, 2006

Coube-me

Assobio o fio da música numa nota distinta do tom. Procuro a projecção do sentir no tremer do lábio modular o som numa ária de ar. Dá-me a impressão que seria músico se tivesse tido alternativa. Mas não, coube-me ouvir. Alinhavar duas notas numa sinfonia de ausência, ser o seco batimento de um pavilhão alçado ao vento, ser o pingo melódico da chuva agreste, a brisa a cantar entre os choupos. Mas não, coube-me ouvir.

Da mão que te dei não sobra nada, nem sobre nada. E se tive dias em que pensei em mais, o tempo tratou de me curar as somas. E penso que se me recordasse da batalha ao menos tinha em mim o sabor da derrota. Mas não, coube-me esquecer. Lembrava-me de nós quando acordava de manhã e podia ficar deitado a ouvir a chuva. Depois partiu a chuva, ainda resto eu e a cama vazia. De ti nada. Lembro-me apenas nitidamente que não exististes. Sim, coube-me esquecer.

Colecciono discos como quem colecciona borboletas. Um alfinete no dorso, uma etiqueta em baixo. Isto és tu quando voavas assim. Por vezes passo tardes inteiras imerso em música, sem vir a tona a respirar, só no meu aquário de melodia e ritmo. E se morresse com a nota na garganta, aí talvez me coubesse esquecer de ouvir. Mas não, coube-me nadar.

Por entre plátanos e poças de água saí de ti e não conto voltar. Se voltar, perco-me porque não sei o caminho. Nunca soube o caminho. E se te prometi algo, vou fazer que não cumpri. Morre um pedaço de mim todos os dias, mas não mais do que morria antes. Sim, coube-me viver. E se me lembrasse de ti, pedia-me desculpa de ter-te conhecido. Sim, coube-me eu, e não me sobra mais nada para dar.

terça-feira, novembro 21, 2006

Bethooven

E como é gostar? E como saber? E o fim de sermos, onde começa? E acaba bem? Começou bem? Acabará, ou restará em rasto de cometa muito depois de nós? Vi um filme sobre Bethooven e as suas partituras, a sua surdez e a sua raiva, e uma ninfa que se esmerava em filtrar a música para ouvidos humanos. Vi naufragar o bote dos meus amores, e só se perdeu o bote.

Cheguei a casa ontem e ouvi a nona duas vezes. E o hino a alegria não me satisfez. Não é do hino, é de mim. Não cabe agora alegria no meu peito. A minha alegria afinal era um bote, vazio e pouco ágil nos mares picados. Ao menos se tivesse timão, mas nem leme tinha. Era, sempre foi, um esquife com dois remos e um remador inábil. Nem sei como nadou a terra.

Bethooven corria as noites de Viena regendo e cantando e sabendo que a sua solidão de urso seria a primeira nota de toda a música futura. O imenso surdo sabia que não ouvia para não sentir medo de si próprio. Eu já não sei nada. Falta-me talvez a ninfa. Tenho talvez excesso de ninfas. Logo à tardinha vou ouvir a nona outra vez. E se não for desta, outras virão. E que reme outro, que me cansam as costas.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Azul

Cada uma das metades cada um dos lados
Porque há sempre um e outro lado
Cada sim e não porque há sempre perguntas
Cada discurso enrolado nas fímbrias da língua

Cada três que é de vez e às vezes não é
Cada mão cada dedo que por vezes são dez
Cada ponto e cada vírgula cada exclamar!
Cada aspa cada hífen a interrogar?

A vida é feita de tijolo branco
Estaleiro de obra e pontes sem lanço
Gatinham os olhos entre massa e reboco
Sem saber ler nem ocupar espaço

Dar conta de tudo o inerte o móvel
Não por minha vontade mas por natureza
Ter das coisas visão como chapa baça
E sentir o ar entre eu e o mundo

Cada um de mim sabe sempre a outro
E cada sabor nunca sabe a si
Vou buscar a nuvem no azul do céu
E na sombra diáfana negar-me o azul

sexta-feira, novembro 17, 2006

Splash

E um tubarão de fome antiga fera por não se saber outro salta do peito ao olhar alguém. E a mandíbula escancarada rutila em dentes agudos e a impressão obliterada fecha-se num final feroz. Ser assim fome e dente e não ser mais nada. Ser assim antes da história e continuar a ser igual por não ser necessário mudar. O bicho fera em mim anda domado, mas tem saudades de sangue e arena. Nem que de circo. Nem que por instante breve de flash e splash.

Homem moderado, delicado e de bom gosto, procura Mulher que o transtorne. Fotografia na primeira carta. Antes havia cavalheiros no correio sentimental, senhoras viúvas, jovens e sós. Agora é mais o imediato virtual e a webcam. Ganha-se tempo e detalhe, e o transtorno nem precisa de toque e de partilha de espaço. Caí no meu ecrã e diz que me amas. Eu não acredito, mas gosto. E o tubarão quase agradece não ter de matar mais.

Sorvo outra cerveja com a sensação de a já ter bebido antes. Um comboio vai partir à hora e tenho de estar em São Bento daqui a já. Há um terminal de net na gare e abro a minha página a procura de mim; não consigo aceder aos comentários, e fico com a impressão que procurava outro. Ai andar perdido pelo Porto ainda me sabe bem. E ao zumbido da cabeça que já não sabe beber chega-se agora o do Urbano. A selecção ganhou e eu voo para casa.

segunda-feira, novembro 13, 2006

O Sul Adiado

O mar de Novembro é meigo como alguém que fez mal e agora procura remendar as coisas. À minha esquerda praia a perder de vista, a direita apenas cimalhas de um prédio feio, que alguém insistiu em construir sobre a duna primária. Num país de progresso não se pode ser primário, duna. Aprende e recua.

O mar arrulha num murmúrio como se o sol o acariciasse até ao gemido, e eu encho os olhos de azul e a pele de raios. Lavei a cara e o pescoço e sinto cristais de sal nas maçãs do rosto e nas sobrancelhas, e apetece-me a água que deixei em casa. Tanta água à minha frente e eu quero é doce. Um homem é feito de desejos desfeitos.

Deito-me na toalha a receber o sol, o som da onda quase imperceptível. E juro a mim mesmo, porque a praia é toda minha, que nunca tive um dia de praia tão perfeito. 10 de Novembro e o sonho dos trópicos esmorece nestas areias do Norte. Não vale a pena correr para o outro lado do mundo. Tenho o Paraíso à porta. O Sul, esse, continuará adiado.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Passos

Atura-me ou atira-me abaixo de ti, desloca-me o braço para novas distâncias, faz de mim outro ou aceita que finalmente não me aceitas. Alone toguether pode a solidão ter graduação como os vinhos, e será perigoso conduzir-me pela vida intoxicado por ti? Ou será como as drogas fumegantes que brumam a cabeça pelas noites e de manhã um desejado nada corre por praias de desembarques vãos?

Ir! Ir sempre foi para mim como jogar a apanhada, escolher o melhor lugar onde invisível esperava a minha vez de ser visto, correr para o coito, ganhar. Ir é para mim circular, não há ponto de partida que não tenha escrito chegada. Fiz da minha vida um entroncamento, e raiz e folhas são eu porque eu sou o elo.

Na minha mão trago escrito o destino no pergaminho da pele mas só acredito nele na medida do meu palmo. Os meus olhos fracos sabem que não vêem o fim, não porque ele não lá esteja, mas porque são fracos. E sei de mim que valho pouco porque nunca ninguém me tentou vender.

Ás vezes a dormir abano-me para acordar e percebo que estava acordado a pensar no sono. Outras caminho pelos dias numa penumbra de gosto que me nega até o sabor de mim. Sei que não há um último número, mas há sempre um último acto. E sei o nosso teatro encerrado, o letreiro apagado, os artistas nas ceias, e um caminho diferente para os nossos passos.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Pau e Corda

Numa amurada de pau e corda
Cortando o oceano na mecânica nave
Tenho mar e céu em partes desiguais
Não tenho mais nada

A memória perdi-a com dados errados
A vontade sumiu como água ao sol
E tu, que agora sei que nunca foste
Continuas a não ser mais nada

Vou na crista do instinto
Esse é meu e não lhe fujo
Numa busca desmerecida e sem propósito
Tenho a impressão que não quero nada

E a onda azul arrulha separada a quilha
Divide a onda loteada
Numa parte Sul e outra Norte
Ainda me restam pontos cardeais

Procuro o espirito por dentro do corpo
Forço-me por tê-lo no verbo e no gesto
Mas é só vaga espuma o desejo de mais
E o cansaço desce como a noite

Voltar atrás sei que é mera questão de vento
E a demora simples medida de força
Mas não quero
Entreguei meu destino à nave

Vai então veleiro porque não
Mas não me mostres terra
Quero mar e céu em soma desigual
Quero Norte e Sul mas não te quero

quinta-feira, novembro 02, 2006

Hallowen

É dia de todos os santos e como sempre ruma toda a gente ao cemitério antecipando o dia de todos os mortos. Esta ponte entre a cessação da vida e a obtenção da santidade e o facto de não haver santos vivos, faz deste dia uma saudável confusão entre vivos e mortos, santos mortos, vivos aspirantes e mortos sagrados, vestidos do manto da serenidade e da sabedoria.

Um mar de flores cobre as campas entre milhares de pessoas negras. Há quatro altifalantes nos cantos, o abade debita pais-nossos que todos repetimos num quase mantra. A multidão não é normal, porque não oscila nem faz barulho. A quadricula de tumbas emuldura famílias e os seu mortos, numa imobilidade forçada pelo respeito e a falta de espaço. Cumprimentam-se os vizinhos de campa com acenos secos, e verifica-se se o arranjo deles é maior que o nosso. Há invejas que florescem nos ramos de rosas.

Benzo-me e saio da nuvem de cera e dor. Os fiéis defuntos degeneram numa fidelidade aos defuntos. Sempre assim foi, aliás. Respeitamos o verbo da morte, sabendo-o um verbo mudo. Por consciência ou saudade seguimos ainda os nossos mortos. Normalmente um cemitério é uma coisa fria e vazia, onde raras pessoas trocam raras palavras, para quebrar o tédio do mármore branco e das cruzes alinhadas. Aqui há o peso do que se calou e agora já não serve.

A santidade é um processo, arquivado numa cave vaticana. Os católicos gostam de santos e mártires porque acham que tendo eles vivido por Cristo ou morrido por ele, indirectamente fizeram-no por todos. São acções ( boas ) do reino dos céus. Fui católico como toda a gente. Agora a Igreja parece-me que vende Futuros, e que se assusta com as oscilações do barril de crude. Não gosto do senhor que é Papa, e dá-me a impressão que este ano houve pouco dinheiro para as palmas e as velas são também menos.

Todos os Santos e Fiéis Defuntos num começo de Novembro primaveril, e eu somo as memórias dos meus e acredito no céu porque é o único sítio onde eles podem estar. Saio pela porta lateral. A principal tem escrito “parvus e magnuns ibo sum” ou algo parecido. É verdade, mas eu não gosto de passar por baixo.