sexta-feira, março 30, 2007

Ovar - Coimbra

Acaba a semana; é a meta sexta. Para mim não há pressão, o emprego escorre imperceptível como o rio plácido, o girar do sol apenas persentido. Há viagem. Arrumar saca, trancar porta, ir ver o trem ( Milton cantava sobre ver o trem ) embarcar ( sou do tempo em que se embarcava nos comboios ). Nesta altura do ano já se vê Mondego à chegada, embora a colina em frente nos arrebente as retinas com a massa bruta do Forum ( de que eu até gosto ). É o meu dia santo, sem mesquita nem devoção. E o domingo é o meu dia de inferno.

Acaba a semana; e o prazer de ir quebrar a rotina choca na rotina do hoje à noite, do sábado do costume, do domingo de arrumar a saca, beijar o pai ir ver o trem, embarcar, voltar aqui. Vale que tenho duas rotinas nesta minha vida bígama, numa alternância que mascara a monotonia, num variar de paisagem, de céu, de gente. Vale que quando uma magoa, a outra consola, quando uma é tristeza, outra é alegria. Vale pela diferença modular de uma vida una, mas com dois ritmos, dois ares, duas águas.

Aqui a casa de um piso, o quintal, a madeira no chão e o telhado rangente; paredes de metro, fachada de azulejo, vitral na varanda, e a capela do meu Sto. António a velar a luz ( e a velar por mim? ). Dá para a Praça, a minha fachada, e é bela. Lá o quarto andar com vista para o prédio em frente, o bairro que já foi plácido, o pai e os irmãos, os amigos e as noites brancas, e no canto da janela do meu quarto, o estádio e uma pontinha da ponte. A minha Ovar e a minha Coimbra, e eu nas duas, e eu em nenhuma, que hoje é sexta, meta e viagem. Hoje é dia santo.

quarta-feira, março 28, 2007

Mais Quente

A dose de esperança que o sol quotidiano traz
A encher a corrente concreta da Primavera
Preenche-me aos poucos o vazio de querer
Fabrica-me uma vontade de ser
Um pouco mais de mim
Um pouco mais de mundo
Um tudo nada mais largo
Um bocadinho feliz

No azul ponteado a nuvem e no vento fresco
Há apetites de novo e sólido
E a memória peremptória
Deixa-se estar a um canto
E não procura o centro
O foco o fulcro
E deixa-me estar mais solto
Menos sério
Mais quente

sexta-feira, março 23, 2007

Flores

Sem palavras, sem caras se constrói nossa ausência
Como sem flores destiladas a impossível essência
Em tridimensional mapa deslocamo-nos pontos
Sabendo em vértice impossíveis encontros

Nas rotas marítimas trilhamos oceano novo
Caravelas contrárias sem costas à vista
Sem vista na vista olhar despejado
A ilha, ó a ilha do destino marcado

Partir de ti e não te carregar lastro
Seria sair de mim e ancorar antes
Ó ferro da corrente da minha estória vaga
Envolve-me em fio de leve amarra

Queria ser o que era antes do que sou agora
Mas não me concede a memória o lapso
Sigo e não olho nunca para traz
E o vento que me leva és tu quem o traz

segunda-feira, março 19, 2007

Caminho

Não sei para onde vou; sei para onde não quero voltar. E, considerando a essência do caminho, já parti. Caminho é a distância que medeia o ponto de partida do ponto de chegada. Definido um lugar onde o regresso não apetece, é obvio que de lá saímos. Não conhecendo destino, é também obvio que reconhecemos a existência de um. Daí, partida adquirida, chegada incerta, estou, obviamente, em caminho.

Sábado pedonal pelos Jardins da minha Cidade: Sereia Botânico Parque Velho Parque Novo Quinta das Lágrimas; faltaram alguns, mas haverá outro tempo deles. O dia era a Encarnação da Primavera, e o cheiro, o sol e o céu muito azul derrearam-me de exaltações. Apaixonei-me, claro; depois passou, com a brevidade telegráfica de um anel de indisponível. Quem inventou as alianças preveniu muitas guerras.

Hoje frio e chuva cobriram-me do Inverno que ainda é, e sendo Dia do Pai lembrei a mãe, e ando triste. Cheguei a casa a minha bicicleta está de novo furada. Caprichosa, castigou-me de a ter usado para fins ideológicos. Um dia pinto-a de azul, só para a chatear. Assim, o amanhã a ver o mar vai transformar-se em oficina e limpeza geral do quintal. Se não chover pelo caminho.

sexta-feira, março 16, 2007

Nacional-Bicicletismo

Na minha matinal bicicleta
Fui ao mar a ver as ondas
Eram cinza quase verdes
Fui ao mar a ver as ondas

Virei-me então p'ra voltar
Ai as ondas quase verdes
Minha vida é pedalar
Ai as ondas quase verdes

Na minha bicicleta rubra
Passo a vida a pedalar
Não ha montes tudo recto
Passo a vida a pedalar

Patriótica canção
Onda verde rubra máquina
Ai afoguem a Nação
Onda verde rubra máquina

Ai afoguem a Nação
Meus Nazis de estimação
Ai afoguem a Nação

quinta-feira, março 15, 2007

Porque No Aí Ido ( a Y. )

Entre os ouvidos a música ausente
Soa muitas vezes mais premente
Como se a ausência da nota
Fosse táctil como a verdadeira pauta

Nas narinas o cheiro que não está
Embebeda às vezes a recordação
Como se a distância entre aqui e lá
Fosse inútil como esquecido mapa

Por isso julgo a memória culpada
Do desvio à rota preparada
Da hesitação em que ergui mi' vida

Por isso em lição memorizada
Está esta alma quieta e concentrada
E a vontade de galgar meia esquecida

segunda-feira, março 12, 2007

Vou Beber a Primavera

Hesita o Eu, já primaveril, entre o cordeiro e o lobo; entre pastorear-se meigo entre as moitas e a urze, ou fazer tocaia rasgar pele comer. Assim é, assim sou, como o pendulo do relógio duvidando o percurso, adiando a badalada, fintando os desejos. Quero-me imóvel para não ter de escolher, mas escolhe-me a nuvem que me sombreia, o vento que me sopra, os odores a pólen e os zumbidos dos insectos. No Inverno morro entre o frio e o lume, na Primavera encolho-me com medo de ser.

Disseram-me: ou está eufórico, ou está deprimido. O senhor balança, é bom que se aquiete. E eu, que até sou gémeos, e que até sempre fui assim, refiz-me linear, evitando até estender o braço, não fosse perder o equilíbrio, o sano equilíbrio. Mas eu amo o excesso, e o excesso ama-me. Vou a Florença procurar a tumba dos amantes, deitar-me esperar o sono, enganar a morte, e morrer de novo, numa mistela de melancolia, agonia e sacrifício?

Não. Vou beber a Primavera. E se for o lobo, serei o lobo, se for o cordeiro, serei a vítima, ou não, como me souber a erva. Pastor não quero, já tive. Foi bom, mas agora quero o bucolismo sem mestra. Abelha selvagem, operária mas proletária, no panteão vermelho dos mortos de fome que morrem barricados sob os seus ideais.

quinta-feira, março 08, 2007

Quatro a Quatro e Três a Três

Sendo suposto o poeta
Sentir mais que o civil
Estruturemos a treta
Com um poema servil

Sim, ó musas de meu fado
Sofro de coração transbordado
Sinto na ausência d'ideia
O som cavo de uma melopeia

Ver a nota e não ouvir o som
Cantar, sempre mas fora do tom
Ter na mão o peso da caneta

Sim é crime que alguém prometa
A si mesmo o nome de profeta
E Cassandra acertar mas não no bom

Sim o desejo desce como um rio
Começa pela fonte em mero fio
Mas depois à chegada em mar ardente
Apaga-se nulo e já nada sente

As minhas olheiras românticas
O meu andar tropeçado
Não pedem às físicas quânticas
O nome do inominado

Sonetam-se porque dá jeito
Quatro a quatro e três a três
Esquecem a métrica, está feito

A chave d'ouro outra vez
Como marca de eleito
A rubrica de quem fez

segunda-feira, março 05, 2007

Prazer

Onde faz o eco a onda que baptizaram tu
Quero-me costa

Onde pousam as tuas asas de voar cansadas
Quero-me ramo

Sei-me sem ti desejo meu
E sendo meu porque não vejo
A sombra veloz do teu cabelo
O toque espectral ai do teu beijo

Onde olham os meus olhos já cansados
Da procura de ti sem te saber

Aqui aperto as minhas mãos quase vazias
Só tatuadas de um nome como o teu

Sim sei fim de busca o encontrar-te
Não não sei de ti nada e ninguém
Procurar, isso sim, ei-de insistir
Não concebo um futuro sem sentir

Olha um espelho de cristal de rocha
Múrmura o encantamento da serpente
Visita os meus sonhos levemente
Sê a chama breve em vela e tocha

Eu fico de olhos abertos e cansados
Em cada ouvido toda a esperança de te ouvir
Mas vem, que me faltas como um fardo

Quero o teu peso sobre mim num amanhecer
A explodir por minha causa a ser mulher
Quero enfim voar sobre ti onda

Onde ecoes, onde queiras, onde prazer